segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Hoje a ROTATÓRIA é especial: trata-se de trecho da genial peça Auto da Compadecida, do mestre Ariano Suassuna, bastante popular depois da corretíssima e histriônica adaptação de Guel Arraes para a televisão em 97 (depois levada para o Cinema, com alguns cortes). Para Jandira e para todos vocês rirem a valer (apesar de longo o quadro, impossível não ler tudo, tamanha a perfeição do ritmo do gênio paraibano de alma pernambucana, também autor da divertida O Santo e A Porca)!


III QUADRO

SACRISTÃO: - Mas um cachorro morto no pátio da casa de Deus?
PADEIRO: - Morto?
MULHER (mais alto): Morto?
SACRISTÃO: - Morto, sim. Vou reclamar à prefeitura,
PADEIRO: (correndo e voltando-se do limiar) É verdade, morreu.
MULHER: - Ai, meu Deus, meu cachorrinho morreu.
(Correm todos para a direita, menos João Grilo e Chicó. Este vai para a esquerda, olha a cena que se desenrola lá fora, e fala com grande gravidade na voz.)
CHICÓ: - É verdade; o cachorro morreu. Cumpriu sua sentença encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.
JOÃO GRILO: - (suspirando) Tudo o que é vivo morre. Está aí uma coisa que eu não sabia! Bonito. Chicó, onde foi que você ouviu isso? De sua cabeça é que não saiu, que eu sei.
CHICÓ: - Saiu mesmo não, João. Isso eu ouvi um padre dizer uma vez.
MULHER: - (entrando) Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai, ai!
JOÃO GRILO: - (mesmo tom) Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai, ai! (Dá uma cotovelada em Chicó)
CHICÓ: (obediente) Ai, ai, ai, ai, ai,! Ai, ai, ai, ai, ai! (Essa lamentação deve ser mal representada de propósito, ritmada como choro de palhaço de circo)
SACRISTÃO: - (entrando, com o padre e o padeiro) Que é isso, que é isso? Que barulho é esse na porta da casa de Deus?
PADRE: - Todos devem se resignar.
MULHER: - Se o senhor tivesse benzido o bichinho, a essas horas ele ainda estava vivo.
PADRE: - Qual, qual, quem sou eu?
MULHER: - Mas tem uma coisa, agora o senhor enterra o cachorro.
PADRE: - Enterro o cachorro?
MULHER - Enterra e tem que ser em latim. De outro jeito não serve, não é?
PADEIRO: - É, em latim não serve.
MULHER: - Em latim é que serve!
PADEIRO: É, em latim é que serve!
PADRE: - Vocês estão loucos! Não enterro de jeito nenhum.
MULHER: - Está cortado o rendimento da irmandade.
PADRE: - Não enterro.
PADEIRO: - Está cortado o rendimento da irmandade!
PADRE: - Não enterro.
MULHER: - Meu marido considera-se demitido da presidência!
PADRE: - Não enterro.
PADEIRO: - Considero-me demitido da presidência!
PADRE: - Não enterro.
MULHER: - A vaquinha vai sair daqui imediatamente!
PADRE: - Oh mulher sem coração!
MULHER: - Sem coração, porque não quero ver meu cachorrinho comido pelos urubus? O senhor enterra!
PADRE: - Ai meus dias de seminário, minha juventude heróica e firme!
MULHER: - Pão para casa do vigário só vem agora dormido e com o dinheiro na frente. Enterra ou não enterra?
PADRE: - Oh mulher cruel!
MULHER: - Decida-se, Padre João.
PADRE: - Não me decido coisa nenhuma, não tenho mais idade para isso. Vou é me trancar na igreja e de lá ninguém me tira. (Entra na igreja correndo)
JOÃO GRILO: - (chamando o patrão à parte) Se me dessem carta branca, eu enterrava o cachorro.
PADEIRO: - Tem a carta.
JOÃO GRILO: - Posso gastar o que quiser?
PADEIRO: - Pode.
MULHER: - Que é que vocês estão combinando aí?
JOÃO GRILO: - Estou dizendo que, se é desse jeito, vai ser difícil cumprir o testamento do cachorro, na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristão.
SACRISTÃO - Que é isso? Que é isso? Cachorro com testamento?
JOÃO GRILO: - Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha patroa, e é claro que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a bênção e que, no caso dele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão.
SACRISTÃO: - (enxugando uma lágrima) Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista) E o testamento? Onde está?
JOÃO GRILO: - Foi passado em cartório, é coisa garantida. Isto é, era coisa garantida, porque agora o padre vai deixar os urubus comerem o cachorrinho e se o testamento for cumprido nessas condições, nem meu patrão nem minha patroa estão livres de serem perseguidos pela alma.
CHICÓ: - (escandalizado) Pela alma?
JOÃO GRILO: - Alma não digo, porque acho que não existe alma de cachorro, mas assombração de cachorro existe e é uma das mais perigosas. E ninguém quer se arriscar assim a desrespeitar a vontade do morto.
MULHER: - (duas vezes) Ai, ai, ai, ai, ai!
JOÃO GRILO E CHICÓ, mesma cena.
SACRISTÃO: - (cortante) Que é isso; que é isso? Não há motivo para essas lamentações. Deixem tudo comigo. (Entra apressadamente na igreja).
PADEIRO: - Assombração de cachorro? Que história é essa?
JOÃO GRILO: - Que história é essa? Que história é essa é que o cachorro vai se enterrar é em latim.
PADEIRO: - Pode ser que se enterre, mas em assombração de cachorro eu nunca ouvi falar.
CHICÓ: - Mas existe. Eu mesmo já encontrei uma.
PADEIRO: - (temeroso) Quando? Onde?
CHICÓ: - Na passagem do riacho de Cosme Pinto.
PADEIRO: - Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se tratasse de assombração de cachorro.
CHICÓ: - Se o lugar é assombrado, não sei. O que eu sei é que eu ia atravessando o sangrador do açude e me caiu do bolso n'água uma prata de dez tostões. Eu ia com meu cachorro e já estava dando a prata por perdida, quando vi que ele estava assim como quem está cochichando com outro. De repente o cachorro mergulhou, e trouxe o dinheiro, mas quando fui verificar só encontrei dois cruzados.
PADEIRO: - Oi! E essas almas de lá têm dinheiro trocado?
CHICÓ: - Não sei, só sei que foi assim. (O sacristão e o padre saem da igreja)
SACRISTÃO: - Mas eu não já disse que fica tudo por minha conta?
PADRE: - Por sua conta como, se o vigário sou eu?
SACRISTÃO: - O vigário é o senhor, mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu.
PADRE: - Hem? O testamento?
SACRISTÃO: - Sim, o testamento.
PADRE: - Mas que testamento é esse?
SACRISTÃO: - O testamento do cachorro.
PADRE: - E ele deixou testamento?
PADEIRO: - Só para o vigário deixou dez contos.
PADRE: - Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre!
JOÃO GRILO: - E um cachorro desse ser comido pelos urubus! É a maior das injustiças.
PADRE: - Comido, ele? De jeito nenhum. Um cachorro desse não pode ser comido pelos urubus.
(Todos aplaudem, batendo palmas ritmadas e discretas, e o padre agradece, fazendo mesuras. Mas de repente lembra-se do Bispo)
PADRE: - (aflito) Mas que jeito pode-se dar nisso? Estou com tanto medo do bispo! E tenho medo de cometer um sacrilégio!
SACRISTÃO: - Que é isso, que é isso? Não se trata de nenhum sacrilégio. Vamos enterrar uma pessoa altamente estimável, nobre e generosa, satisfazendo, ao mesmo tempo, duas outras pessoas altamente estimáveis (aqui o padeiro e a mulher fazem uma curvatura a que o sacristão responde com outra igual), nobres (nova curvatura) e, sobretudo, generosas (novas curvaturas). Não vejo mal nenhum nisso.
PADRE: - É, você não vê mal nenhum, mas quem me garante que o bispo também não vê?
SACRISTÃO: - O bispo?
PADRE: - Sim, o bispo. É um grande administrador, uma águia a quem nada escapa. JOÃO GRILO: - Ah, é um grande administrador? Então pode deixar tudo por minha conta, que eu garanto.
PADRE: - Você garante?
JOÃO GRILO: - Garanto. Eu teria medo se fosse o anterior, que era um santo homem. Só o jeito que ele tinha de olhar para a gente me fazia tirar o chapéu. Mas com esses grandes administradores eu me entendo que é uma beleza.
SACRISTÃO: - E mesmo, não será preciso que Vossa Reverendíssima intervenha. Eu faço tudo.
PADRE: - Você faz tudo?
SACRISTÃO: - Faço.
MULHER: - Em latim?
SACRISTÃO: - Em latim.
PADEIRO: - E o acompanhamento?
JOÃO GRILO: - Vamos eu e o Chicó. Com o senhor e sua mulher, acho que já dá um bom enterro.
PADEIRO: - Você acha que está bem assim?
MULHER: - Acho.
PADEIRO: - Então eu também acho.
SACRISTÃO: - Se é assim, vamos ao enterro. (João Grilo estende a mão a Chicó que a aperta calorosamente) Como se chamava o cachorro?
MULHER: - (chorosa) Xaréu.
SACRISTÃO: - (Enquanto se encaminha para a direita, em tom de canto gregoriano) Absolve, Domine, animas omnium fidelium defunctorum ab omni vinculi delictorum.
TODOS: - Amém.
(Saem todos em procissão, atrás do sacristão, com exceção do padre, que fica um momento silencioso, levando depois a mão à boca, em atitude angustiada, e sai correndo para a igreja.)

(SUASSUNA, Ariano Auto da Compadecida, 1957 - fonte: Academia Brasileira de Letras)
 

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