sábado, 28 de novembro de 2015

Um baldio adeus...

Jamais me esquecerei daquela tarde marcada pelo meu pai... Afinal, graças a ele, eu me encontraria com um dos maiores poetas da Língua Portuguesa - e que, por acaso, era seu primo: Nauro Machado! E lá fui eu, ensimesmado em meus vinte e poucos anos e com meu "portfólio" esquálido de alguns de meus melhores poemas escolhidos para participar de um concurso literário local, que eu ansiava fossem lidos pelo Mestre - isso, é claro, se eu conseguisse entregá-los!

Pontualmente, chegava aquele velho calvo e de barbas alvas e bem cuidadas, em seus trajes sociais de mangas curtas com seu inafastável guarda-chuva repousado no braço direito, enquanto eu o aguardava nervosamente na frente de sua repartição pública da Secretaria da Cultura do Estado, no Reviver. "Teu pai falou comigo que és escritor, que também és um poeta! O que querias deste velho cansado de Poesia?", brincou comigo, de cara, no que eu gaguejava e só sabia me diminuir: "Quem sou eu, Poeta: o senhor é o Mestre! Sou seu fã há muito tempo, ainda mais depois que li sua 'Antologia Poética', aquela, com prefácio de Drummond... Só vim ter a honra de conhecê-lo"...

Nisso, ele me convidou para entrar e tivemos ali uns dois dedos de prosa - prosa essa que, em retrospecto, confesso sinceramente nem saber como se deu, uma vez que eu mal conseguia falar, tremendo e gaguejando diante de um ídolo: meu Deus, era Nauro Machado que estava ali! E o espanto nem era por qualquer distanciamento ou dificuldade imposta por sua figura aparentemente austera, quase um bruxo do conhecimento, não: amante do Centro Histórico e morador da Rua das Hortas que sempre foi, coisa mais fácil era encontrar o gênio a descer e a subir as ladeiras seculares de São Luís com sua silhueta elegantemente longilínea e, mesmo vista de longe, visivelmente reflexiva (adoráveis os causos contados pelo meu pai sobre sua figura, especialmente a de um jogo de damas interrompido pelo Poeta por causa de uma inspiração, o que teria enfurecido o meu Velho). O nervosismo era coisa de não saber mesmo o que dizer diante de alguém que admirava tanto, à distância, pelo poder de seu talento e sua cultura...

E, num desses silêncios meus de admiração em meio à nossa "conversa" - coisa patética que, tenho certeza, fatalmente se daria se eu igualmente desse de cara com outros ídolos, como Chico Buarque ou João Gilberto -, ele, jocosamente, deu uma palmada em minha coxa direita, como que a me despertar daquele transe, e me disse uma frase, bem alto, que jamais esqueceria: "Tem que ler, poeta: não se faz Poesia, nem se escreve, sem ler!", depois que falara sobre o que estava lendo naquele momento: alguns dos grandes franceses, como Rimbaud, em seus idiomas originais (a melhor forma de se sentir Poesia...). Eu que sempre lera Poesia, mas, é claro, infinitamente menos que ele, apenas sorri desconcertado, admitindo, meio que tacitamente, que a avidez pela Crônicas e pelos Contos me havia, realmente, sempre sido um pouco maior!

Logicamente que jamais lhe mostrei meus escritos, não tive coragem. Mas agradeci demais por aquele encontro e todas aquelas breves lições que carrego até hoje em meu peito de poeta amador... Ainda o encontraria algumas vezes, como na locadora de seu filho, o cineasta Frederico Machado, ou nalguma feira do livro: "- Estás gostando, poeta (ele insistia em me chamar assim)?" "- Achando os preços ainda um pouco salgados para uma feira, Mestre..." "- Mas livro não é caro! Caro mesmo é aquela coisa ridícula chamada de abadá, imundície feita para se brincar uma noite nessas micaretas toscas, aquilo que é caro!"... Mas nunca lhe mostrei um verso meu sequer! Faltou coragem, medo de alguma crítica mais dura ou seria apenas reconhecimento de pequenez diante de um ídolo? Nunca vou descobrir... Tudo o que sei é que, ao tomar conhecimento, hoje pela manhã, da sua partida, não houve como não ficar triste e reflexivo, especialmente diante de seus versos sempre a elucubrar sobre a existência e a essência da Poesia em si - e, quase que instantaneamente, vieram à mente os derradeiros versos de "O Parto", um de meus favoritos do Grande Nauro (como eu lhe retribuía o gracejo do "poeta" que recebia): ser poeta é duro e dura/ e consome toda/ uma existência... Nada mais certo diante de uma vida embriagada e desbravadamente devotada à Poesia que este gênio teve ao longo destes 80 anos bem vividos! 

Saísse do Maranhão e seria reconhecido pelo Mundo, mas preferiu fazer de seu mundo esta ilha encantada por seus versos, um baldio e genial poeta e funcionário público, tal como outro famoso grande gênio dos versos... E, saindo do Centro, morreria um pouco - tal como se deu, na realidade, desde a descoberta de seu "aguardado" câncer (Estou esperando o câncer que seja mestre), quando acabou por abandonar seus amados paralelepípedos históricos em troca de uma proximidade maior com o filho, no moderno e "nobre", porém estéril de poesia, bairro do Renascença... Mas, apesar de tudo isso, a tristeza sobre a partida de Nauro Machado aos poucos, ao longo deste sábado, foi em mim se desfazendo justamente pelo Poder ainda atual de sua obra-viva, que lateja e goteja inúmeras inspirações a cada lida minha nalgum de seus livros brilhantes, cheios de um estranho lirismo metafísico que acalenta e derruba o mais incauto visitante de seu trabalho perene. 

E assim, aos poucos, depois de uma breve visita a alguns de seus versos mais caros no pouco tempo deste sábado entre os filhos e os afazeres do inefável existir, foi-me vindo a boa sensação de que ele bem poderia estar a se informar, com sua ainda mais magra silhueta depois dos últimos anos de luta contra sua doença, onde é que, no outro lado, poderia encontrar mais dos seus - e a reviver os versos cheios de pungência sobre a vida e a morte de meus outros ídolos, fiquei com a boa certeza de que Drummond, Bandeira, Cecília e Pessoa o receberão de braços abertos, a tratar, de igual pra igual e pela eternidade, sobre o que é poetizar...

Ofício 

Ocupo o espaço que não é meu, mas do universo. 
Espaço do tamanho do meu corpo aqui, 
enchendo inúteis quilos de um metro 
e setenta e dois centímetros, o humano de quebra. 
Vozes me dizem: eh, tu aí! E me mandam bater 
serviços de excrementos em papéis caídos 
numa máquina Remington, ou outra qualquer. 
E me mandam pro inferno, se inferno houvesse 
pior que este inumano existir burocrático. 
E depois há o escárnio da minha província. 
E a minha vida para cima e para baixo, 
para baixo sem cima, ponte umbilical 
partida, raiz viva de morta inocência. 
Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui? 
E depois ninguém sabe mesmo do espaço 
que ocupo, desnecessário espaço de pernas 
e de braços preenchendo o vazio que eu sou. 
E o mundo, triste bronze de um sino rachado, 
o mundo restará o mesmo sem minha quota 
de angústia e sem minha parcela de nada. 

Nauro Machado
 

+ voam pra cá

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