sábado, 30 de novembro de 2019

Meu Primeiro Romance

Você ainda me vai me amar amanhã...?
CAPÍTULO I
Alguém pode me dizer onde estou...?

Sempre, por trás de cada ponto, há uma grande história para ser contada... No momento, ainda me lembro, por exemplo, de como ouvia música até bem pouco tempo, vendo o disco rodando com suas ondulações - não em vista aérea, mas na horizontal, lateralmente a mim, sentado, com a agulha subindo e descendo as leves ondulações do LP... Até quando o tema é sonoro, minha memória é visual! Hoje, mais facilmente ainda se chega a esse efeito da imagem associada ao som: agora mesmo, ouço Be my baby a encabeçar uma playlist daqueles adoráveis grupos vocais femininos dos anos 60, com a capa de um disco das Ronettes congelada na tela grande da TV (onde que, no meu tempo, existiam telas grandes assim?) - mas não é a mesma coisa, falta algo... Como o pegar a capa, sentir o cheirinho do saco que envolvia o disco. E pegar o "bolachão" (na época, não parecia tão grande...), colocar, pôr nele a agulha e olhar sua dança, imaginando outras danças nalgum lugar a partir dali... Agora, um clique no controle remoto e nada mais! Mesmo assim, resisto... E danço, mesmo com a tela congelada, viajando nas minhas memórias cinematográficas e editadas ao meu bel prazer...

Entretanto, é no instante em que, logo em seguida, começa a tocar Will you still love me tomorrow? que se inicia mesmo a rodar um filme inteiro na cabeça (rodar é modo de dizer, do tempo das projeções com rodos: agora é tudo digital): a marcante voz de Shirley Owens, a embalar The Shireless, simplesmente me trouxe aquele sorriso diante de mim, mais uma vez - livre e vivo, como o do gato de Alice no País das Maravilhas, até que se formasse o seu lindo rosto, junto ao resto do corpo estonteantemente em movimento (ela sempre foi lindíssima; mas quando dançava...), saindo de uma espécie de desembaçamento da sua imagem e de todo o cenário por trás - aquela festa de 10 anos de formatura da primeira turma de Sociologia daquela faculdade onde nos conhecemos. Ela, Bourdieu; eu, Marx e Durkheim; e nós dois, com tantos pontos em comum, tanta história, só conseguíamos sorrir um para o outro enquanto tocava essa deliciosa canção que falava por nós e nos redimia de tanto tempo sem nos vermos ou sequer nos procurarmos: igualmente exatos 10 anos... 

Nem bem terminava o antigo hit quando ela de mim se aproximava devagar (como sua boca ficava linda levemente entreaberta...) - Pra dizer algo? Pra me beijar, depois de tantos anos? -, a nova canção que passava a tocar curiosamente redefinia nosso derredor, estando agora nós dois numa barca com esse som ambiente, Samba de Verão tocado em Francês, passeando pelos verdes mares de um paraíso bem parecido com as Maldivas daquelas imagens de papel de parede manipuladas da Microsoft (não havia photoshop? Eram fotos reais?!)... Mas espere aí: ela ficava enjoada só de olhar o movimento de um barco atracado ao píer! E nós nunca viajamos para fora do Brasil - embora ela sempre brincasse com a ideia de que, fracassadas todas as nossas pesquisas, poderíamos nos mudar para alguma praia turística no Pacífico e viver das nossas histórias contadas aos que passassem... Estou confuso!

De repente somos interrompidos por um ex-aluno imbecil no exato ponto em que nos chegávamos um ao outro ao final daquela canção sessentista: estávamos de volta àquele baile dos 10 anos - juntamente a outros três colegas, ele se infiltrou entre nós de uma forma que só restou a ela ser simpática e, olhando de soslaio pra mim e soltando um sorriso amarelo de o que se há de fazer..., dar a atenção de seu belíssimo sorriso para aquele cretino desenxabido e sua curriola - que, posso jurar, estampava risinhos de escárnio ao me encarar pela situação vencida por seu grupinho de incapazes (depois soube que lucravam horrores, os "rapazes de bem", em esquemas de rachadinhas na Assembleia Legislativa, onde seus papais lhes deixavam brincar de assessores)! Pior nem foi isso, mas a minha estupidez de ter brigado com ela, no final da festa e bem no meio de um estacionamento completamente vazio para nós (ah, nossos estacionamentos de outrora...), só porque a encontrara, uma hora antes, dançando ao som de Pra ser sincero (nunca suportei o Beto Gessinger!) com o mesmo imbecil do aluno metido (como era o nome dele, meu Deus...?) - depois de tanto tempo, não dava para apenas dizer que a amava e deixasse para outra hora aquela infantil cena de ciúme?!

Agora outra canção, Insensatez, começava a girar em nosso antigo estéreo 3 em 1 da Gradiente, eu não precisava mais do aplicativo da smartv (sequer o entenderia se me perguntassem a respeito): voltei no tempo para nosso primeiro dia morando juntos (eu nunca quis me casar...), voltando pra casa depois de um chatíssimo congresso; ela, aquele sonho só de babydoll, sorrindo pra mim com uma taça de vinho tinto pela metade (com certeza malbec, seu favorito até para me sentir o cheiro em perfume!), perguntando-me maliciosamente se eu queria uma coisinha pra beliscar... Como fomos felizes... Ou ainda somos? Sinto-me um pouco tonto e percebo várias garrafas de vinho vazias derribadas a esmo - ela que tinha aquela mania besta de colecionar as rolhas e botá-las em quadros de vinho, em cada uma anotada a data daquele porre de felicidade; eu só bebo e jogo tudo fora... Mas ela não está aqui pra ralhar comigo pela bagunça, posso ver que não... Então por que a sinto tão perto, quase que como a sentir os poros eriçados de sua pele, a mais aveludada que tive o prazer de tocar em toda a minha vida? 

Preciso saber onde estou e o que está havendo... E acho que também preciso beber mais um pouco... Talvez ouvir outra canção pra entender ou me pôr pra dançar... Pode ser que a veja de novo e ela me explique onde é que ela possa estar...

CAPÍTULO II
O escritor temperamental

- Menina, poderias ler mais rápido, por favor?!
- A culpa é tua se escreves tão bem e quero sorver cada vírgula...
- Sei de teus exageros, e não seria diferente agora... Mas é só mais um artigo!
- Não... É um escrito teu... E... só mais um pouquinho, terminando a conclusão... Voilá! Genial como sempre, minha vida!
- Quero algo crítico: sei que não é a tua área específica, mas tens como avaliar - pra você é sempre tudo tão perfeito o que eu faço?! Qual a vantagem de viver com uma professora de Sociologia se não tenho teu lado profissional na análise do que escrevo?!
- Vem aqui que eu te mostro as vantagens...
- Falo sério: sabes que tenho achado minha pesquisa superficial... Nunca mais publiquei nada de relevante...
- Ai, ai, não me vem de novo com aquela história de romance...
- Não, não... Você já me naufragou qualquer sonho de me tornar um escritor literário...
- Longe de mim! Só acho que viver de Literatura nesse País é ainda pior que viver de pesquisa universitária!
- Vou escrevendo em meu blog...
- ... Que ninguém lê! Bom, faz como quiseres - desde que não te atrapalhe...
- ... As pesquisas: sim, já sei - o "Grande Marxista Expert de Durkhéim!

Tocava Beethoven, sua Quinta Sinfonia, nalgum movimento mais denso e soturno, volume alto. Clima acabou tão pesado quanto no silêncio que se seguiu tão logo acabou de rodar minha coletânea de clássicos da Música erudita, de uma daquelas revistas de coleções, das bancas.

- A gente podia sair... Saudade de usar aquele vestido que você me deu...
- Você só usou uma vez...
- Não é que eu não tenha gostado, já te expliquei: faltou ocasião...
- Ele não tinha decote...
- Desde quando gosto de decote?!
- Desde sempre: 80% de tuas roupas...
- Ah, 'tava demorando: tens sempre uma coisinha pra falar de mim, minhas roupas... Sinceramente, não sei o que você faz morando comigo!
- Também tenho me feito a mesma pergunta, sendo tão monstruoso assim como tu me pintas...

Deus, como fui idiota... Tudo bem que ela vinha implicando com minha decisão de deixar o magistério pra me arriscar na Literatura, poeta e cronista amador que era desde a adolescência e professor profissional a partir da juventude. No entanto, o mercado estava para romances completos e longos e uma narrativa longa e cheia de detalhes com que eu me preocupasse, enveredando por mil e uma subtramas cheias de personagens, nada podendo conter furos, no fundo me amedrontava, nem me sentia mesmo capaz, talvez ela estivesse certa... Mas havia o desafio. A pesquisa havia ficado burocrática. Nós dois estávamos burocráticos. E eu, mestrado e doutorado nas metodologias e simbolismos antropológicos da psicologia social e progressista, parecia não entender mais nada do microcosmo daquela nossa relação... Mas nada justificava esse meu distanciamento, minha falta de paciência e de cuidado! Precisava de algo pra beber...
Resultado de imagem para diecast miniature bottle drink pencil sharpener
 

+ voam pra cá

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