quarta-feira, 28 de março de 2012

Idos tempos cheios de bom humor...


Quando eu era criança, ali pela terceira série primária, eu tinha um "privilégio", aliado a uma regra bem sólida, lá em casa: eu até podia ficar acordado para assistir a um dos programas de "tarde da noite" (e olha que, naquela época, assistir TV até "tarde" consistia em ir para cama bem mais cedo que hoje), mas desde que fosse apenas um dia da semana. Assim, naquele tempo, eu poderia escolher ou Viva o Gordo, com o Jô Soares atuando como humorista em quadros fixos, às segundas, ou Chico Anysio Show, com o Chico e suas centenas de caracterizações, às quartas. E nem adiantava quando, ardilosamente, escolhia ver o Jô logo no comecinho da semana, imaginando que, na quarta, minha mãe já se haveria esquecido e acabaria por me deixar ver o Chico também - só na quarta seguinte, se eu quisesse...

Pois bem, a "disputa" era boa (lembro que o povo costumava inventar uma "rivalidade" entre os dois, quem seria melhor, se Chico ou o Jô): ambos os programas eram legítimos representantes da tradicional escola brasileira do "humor de esquetes"; Jô Soares, longe do velho chato arrogante de hoje, era um grande humorista... Mas as quartas, normalmente, ganhavam nas minhas escolhas pueris: se costumo dizer que "aprendi a rir" com Charles Chaplin e Jerry Lewis (porque exibidos em sessões vespertinas, dominicais, quando desde tenra idade via TV com meus pais), obtive minha formação com o genial Chico Anysio, aquele que era o próprio esquete!

Afinal, Chico era o homem das mil faces, vivenciando cada personagem e se transformando de tal forma que muitas vezes se esquecia que era ele por trás da maquiagem ou das vozes incríveis! E que vozes: se hoje tenho a facilidade de criar vozes, chegando a imitar alguns diletos cantores só de brincadeira, devo isso à escola daquele Mestre, ele mesmo, um grande imitador - e tome imitação de Luiz Gonzaga na voz de Pantaleão; ou um sarro com o jeito carioca de falar de um conhecido aplicado no Azambuja etc.

E se muitas piadas eram "adultas" demais para mim naquela idade, com malícia ou carregadas de conteúdo político ou social, tudo se atenuava com personagens mais "infantis", como Cascata e Cascatinha ("Meu pai-pai... Meu 'garouto'"!), Bento Carneiro ("Do além, do aquém, 'de adonde' 'veve' os 'morto'"), Popó ("Idiooota"!), Silva ("'Bunitinho'"!) e Professor Raimundo ("E o salário, ó...!") - este, um caso à parte: o primeiro de todos, ainda na rádio, na década de 50, também foi o primeiro lançado na televisão, sendo o personagem mais humilde de Chico, porque não só servia de "escada" para outros brilharem como também alavancou inúmeros comediantes esquecidos (Grande Othelo, Walter Dávila, Brandão Filho, Zezé Macedo) ou lançou muitos novos talentos (Claudia Gimenez).

Um lado que pouca gente conhece é o seu como compositor: além do brilhante clássico Rio Antigo (imortalizado na voz de Alcione), Chico Anysio ainda criou Baiano, uma sátira a Caetano, que, ao lado de Arnaud Rodrigues (Paulinho), viveu Baiano e os Novos Caetanos e lançou alguns discos e vários sucessos inteligentes e de boa música pela dupla de personagens, como Aldeia, Folia de Rei, Urubu tá com raiva do boi e o "clássico maior" Vô batê pa tu. E, como meu pai possui até hoje o LP Baiano e os Novos Caetanos, uma delícia rememorar estes clássicos da minha infância (juntamente ao já clássico tema de abertura dos programas desde a década de 80, Hino ao Músico, cuja vinheta roda ao lado)...

Eu cresci, outros programas de humor surgiram, o "privilégio-proibição" foi-se atenuando (já na minha quinta série, eu poderia ver TV Pirata acrescido aos outros dias notívagos, que não cessaram até hoje), mas só uma coisa não mudava: minha adoração pelo velho Chico e seus personagens fascinantes! Decerto que, com o passar do tempo e com as inúmeras transformações (mudanças e aumento no número de roteiristas, alterações nos programas e nos nomes - Estados Anysios de Chico City, Chico Total etc.), o ritmo daquele humor de esquetes foi perdendo o fôlego... Mas nada que o velho Chico não tirasse de letra: multifacetado, ele ainda seguiu genial em suas crônicas no Fantástico (o programa era bom nessa época...), nos seus textos ("O brasileiro só tem três problemas: café, almoço e jantar"; "No Brasil de hoje, os cidadãos têm medo do futuro. Os políticos têm medo do passado" etc.), no Teatro (atuando ou dirigindo), com suas pinturas e seus livros, lançados aos borbotões (alguns interessantes; outros, nem tanto, somente com repetecos de quadros ou piadas tradicionais...), no Cinema (atuou em Tieta, tendo participado de filmes em parceria com Grande Othelo e com o também genial Oscarito no passado) e na TV (no caso, a cretina Globo, que o manteve na geladeira por um bom tempo, fazendo apenas participações em novelas ou em especiais - sem contar o crime de colocá-lo no decrépito Zorra Total).

Hoje a "moda" é o 'stand-up comedy', onda em que, guardadas as devidas exceções, muita gente sem muito talento tem embarcado, ainda que ignorando que um dos pioneiros nesse "humor de cara limpa" foi o velho Chico Anysio... Tempos em que o humor era feito por gente muito mais preparada para surfar no movediço terreno do politicamente correto sem as patrulhas moralistas caírem em cima... E agora me vai embora o Chico, numa triste morte anunciada (em seu último 'show' aqui em São Luís, a que tive prazer de assistir, atuou quase o tempo inteiro sentado, devido a problemas crônicos de respiração graças ao cigarro), sem graça, fazendo-me ainda mais nostálgico por dias antigos de uma infância repleta de personagens inesquecíveis (Alberto Roberto, Nazareno, Pantaleão, Bozó - todos morrendo com o seu autor...)!

E, falando em tempos idos e em gente cheia de talentos, nem bem terminava estas breves divagações sobre idos tempos cheios de bom humor inteligente, descubro que o velho Millôr Fernandes morreu ontem, aos 88 anos... Morrem o jornalista, o escritor, o dramaturgo, o humorista, o tradutor: vai-se mais um homem de mil faces da minha rica infância, do tempo em que ria com ele na Veja (no tempo em que era inocente e lia esse lixo de jornalismo reacionário de extrema-direita), suas máximas geniais ("Chato: indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele", "O homem é um macaco que não deu certo" etc.) e adorava suas ilustrações multicoloridas e debochadas...

Não nego que adore esta nova geração cheia de gás, como Marcelo Adnet e Rafael Queiroga (respectivamente, o Chico Anysio e o Arnaud Rodrigues dos novos tempos), o Danilo Gentilli, o Marcelo Bonfá... Mas mesmo estes devem confessar que nada seriam sem mestres como o Chico (e, agora, o Millôr...) lá atrás, a marcar suas infâncias na melhor educação do humor brasileiro...

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14 comentários:

Christian Steagall-Condé on 28 de março de 2012 às 17:42 disse...

Pois então, eis que perdemos uma penca de bons personagens, me senti como se um Airbus tivesse caído, levando-os para sempre, sem contar que o próprio Millor, sozinho, valia por uns 2O... :(

Mione on 28 de março de 2012 às 17:52 disse...

Em menos de uma semana perdemos dois grandes brasileiros. Estes que faziam um trabalho de qualidade e que serão reconhecidos por seus trabalhos fantásticos com o passar dos anos.
É verdade que a comoção em torno da morte de Chico me pareceu falsa. Acho que já estavam esperando que morresse, e foi tudo tão falso que me deu náuseas, mas não deixam de ser grandes perdas. E os humoristas de hoje, com certeza, não seriam nada sem os de ontem. Que descansem em paz, os dois :3
Bela postagem, mais uma vez.

Te citei lá no blog hehe

beijo!

Unknown on 29 de março de 2012 às 00:06 disse...

Estamos ficando literalmente sem graça. :(

Abraços

Gilberto Carlos on 29 de março de 2012 às 10:48 disse...

Chico era uma pessoa inteligentíssima, criador de centenas de tipos impagáveis. Uma grande perda para a dramaturgia nacional.

Anônimo disse...

Ola BatMoço,
Realmente as baixas foram tristes. Quando morreu Tom Jobim, me deu aquela sensação estranha de que esses grandes caras nao iam ter substitutos.Ja pensou alguem fazer algo com a doçura de um Passarim? Tá dificil. Agora me surpreendi com mais esse talento do Chico Anisio que eu nao conhecia- lindissima essa musica Rio Antigo. Me parece familiar, mas nao posso jurar por Deus que ja ouvi antes. Devo ter ouvido com certeza.
O Jo Soares, apesar de muito inteligente e grande historico, por sua arrogancia como voce mesmo falou- por que falta tanta humildade ali? Deus lhe deu de presente um filho autista para que o sujeito aprendesse a ser humano logo no começo da vida adulta,mas acho que nao foi aprendizagem ao Jo que parece cada vez pior, Enfim, problema dele. Nao me fazem falta essas entrevistas que ele monologa.
O Millor tb é a sensaçao do fechar de cortinas de uma epoca pensante, da qual so restou vestigios. Lamento. E sei que a Educaçao e o Ensino, estao cada vez mais rarefeitos, desde a epoca de Rousseau...
Entao? Vida longa ao Ziraldo, tao sensivel, criativo e com grandes trabalhos para nossos pimpolhos. Flicts foi um marco importante na minha vida. E acredito, na de varias gerações.
Lindo seu post, adorei.
Quanto a mim estou cansada, preciso ver no medico, do que se trata. Um cansaço maior do que o meu empenho que é grande. Mas parece que vim do Ceará a pé. O que sera? Sei la...Bjos (ah os 20 segundos é uma proposta do filme)

Lays Souza on 30 de março de 2012 às 11:08 disse...

Citando Jerry Lewis de novo... hahaha...
Bom... É muito triste ler tudo isso... Pois além de não ter vivido essa época tão maravilhosa que citaste, me dei conta que jamais conhecerei esse grande gênio do humor. Não tive a oportunidade de assistir Chico no seu "auge", infelizmente. E o que vi de Chico, ultimamente não foi muito agradável. Foi uma verdadeira desonra colocá-lo em um programa como Zorra Total. Já me sentia triste, por ele não ser o mesmo de antes. Mesmo tendo conhecido ele tão pouco. Mas graças à internet pude assistir um pouco de sua maravilhosa comédia. Uma grande perda.
Milôr. Ah, Milôr... Não imagino como teria sido minha vida de estudante no Ensino Fundamental e Médiio, sem suas prosas. Quando tinha que ler seus textos, era um momento de alegra. Era uma obrigação gostosa. Fará grande falta também, este outro grande gênio.
Duas perdas irreparáveis. Dois homens insubstituíveis.

Jota Effe Esse on 30 de março de 2012 às 13:17 disse...

Sem a menor dúvida, Dilberto, Chico Anysio e Millor Fernandes deixaram o Brasil muito mais pobre. Perdemos a riqueza representada por eles. Gostei das definições de "chato" e "homem" do Millor, e acrescento a de auto-didata: ignorante por conta própria. Lembrando que ele era auto-didata. Meu abraço.

Wilson Antonio on 30 de março de 2012 às 16:35 disse...

Que incrível homenagem! Belíssimo texto! Senti-me numa divertida máquina do tempo. Não há forma mais prolífica de homenagear estes 2 grandes mestres do que celebrando-os em nossa forma de expressão artística! Parabéns :-)))

Ruby on 30 de março de 2012 às 21:34 disse...

Dilberto, também lembro quando criança dos programas que o Chico fazia e tinha meus personagens preferidos, morria de rir com os primos fazendo imitações. E as piadas realmente eram bem maliciosas, característica bem presente nos programas brasileiros de humor, por isso ainda admiro o Chespirito.
Mas com o tempo, parece que as piadas foram ficando escassas, a criatividade já não era a mesma e os programas foram se perdendo, mesmo o Chico dizendo que estava na geladeira. Arnaud Rodrigues havia deixado-o também, enfim. Foi uma perda muito grande e pelo menos na Globo o humor já não existe mais, há tempos!
E que dizer de Millôr que parte logo em seguida? São perdas irreparáveis, lacunas que ficarão pra sempre. Grande tributo ao Chico, gênio do humor. RIP!

Rubi on 30 de março de 2012 às 23:33 disse...

Dilberto! Antes de mais nada, parabéns pela homenagem (merecidíssima por sinal) Infelizmente eu não tive oportunidade de assistir os programas que você citou acima (por sorte eu tenho como opção o canal Viva, que vez ou outra eu consigo assisitr). Os personagens do Chico são sempre muito diferentes um do outro, o que prova seu talento como humorista. Bom, Chico é Chico. Não tem pra ninguém. Foi uma grande perda.

Em relação ao texto sobre Buster (vou tentar me controlar da próxima vez HAHAHA você sabe né? Fã sempre deixa escapar alguma coisinha). Em relação ao post sobre o filme O Que Terá Acontecido a Baby Jane, de fato... é engraçado perceber como cada pessoa interpreta de um jeito o que lê. Na minha opinião o filme não é divertido, mas irônico, sarcástico. Sempre achei a história bastante sinistra e o final ... bom, o final dispensa comentários. Foi um dos melhores filmes que já vi.

Em relação ao ilustre, sim, é justamente pela sua demora HAHAHAHA e não se preocupe com os comentários, saiba que sua opinião é extremamente importante!

É sempre um prazer recebê-lo em meu blog Dilberto! Até breve.

Luci on 1 de abril de 2012 às 01:08 disse...

triste ver o efeito do tempo transformar as pessoas. as vezes assito o Jô no canal viva. não é a mesma pessoa. o q será que leva um cara inteligente se transfigurar assim?
eu assistia chico city! era o programa de familia.
e vc me fez pensar que não morre só uma pessoa.
bj

cineboy on 1 de abril de 2012 às 10:57 disse...

Chico Anísio foi o conservador mais interessante de todos. O homem de direita mais intelectual e preocupado com questões socio-políticas e um democrata que ousava falar na época da ditadura com total esperteza e humor ferinos. Um gênio brasileiro reaça tão maravilhoso quanto outro reaça incrível que foi Nelson Rodrigues haha. Perfeita homenagem a ele Dilberto. E quanto a Millor,quisera eu saber mais do filósofo,cartunista,escritor,humorista e homem de mil talentos,tal qual Chico. O Brasil perde realmente dois gênios inigualáveis!

Canto da Boca on 1 de abril de 2012 às 17:58 disse...

Aí reside a diferença, no humor inteligente, divertido e não nessas aberrações agressivas que vemos hoje em dia. Salvo algumas exceções, é claro!

Em pouco tempo, perdemos tanto, perdemos muito, perdemos dois, Chico e Millor...

Jefferson C. Vendrame on 1 de abril de 2012 às 18:13 disse...

Grande Humorista, Grande Artista,
Grande Perca.

Parabéns pelo tributo

 

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