quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Bacurau somos nós!

Cena de abertura:
Caminhão pipa, que traz os primeiros interlocutores do filme, passa por cima e destrói alguns caixões espalhados pela estrada, frutos de um acidente entre um caminhão carregando mais caixões e uma moto, conforme se vê na cena seguinte.
Uma das cenas seguintes:
Prefeito em campanha a reeleição chega em comitiva e encontra todo o povoado de Bacurau escondido, sem ninguém para recebê-lo. Em seguida, manda um de seus asseclas começar a filmar o momento em que fará uma "grande doação de livros, comida e remédios para a comunidade": centenas de livros velhos e usados são despejados como lixo de uma caçamba, em frente à biblioteca local; e caixas e mais caixas contendo comidas com prazo de validade vencido (em até 6 meses) e medicamentos tarja-preta são amontoadas na praça central.

- O nosso museu é excelente... - apresenta um dos moradores do povoado.

- E quem nasce em Bacurau é o quê? - pergunta a forasteira carioca, com enfado.
- É GENTE! - responde, com rapidez, o garotinho no bar.

- Temos orgulho do nosso museu, é dos melhores da região... Venha conhecer nossa História... - menciona Pacote.
- Museu?! Ah, não 'tou interessada, 'brigada! Estamos só de passagem... - responde a carioca, ainda com desdém.

- Mas vocês não estavam autorizados a fazer isso: vocês mataram pessoas do seu povo! - reclama o líder alemão dos assassinos estrangeiros, em Inglês.
- Não somos iguais a eles; somos muito mais parecidos com vocês: somos brancos! - vocifera, também em Inglês, a mulher carioca.
- Vocês?! Iguais a NÓS?! Rá, rá, rá, rá, rá, rá, rá, rá! - riso escrachado geral entre os assassinos estrangeiros - Você, com esse nariz e esses lábios?! E você, com essa pele mais morena...?! VOCÊS SÃO LATINOS! JAMAIS SERÃO COMO NÓS! - encerra o líder.

- Ele parecia ter uns 16 anos... - explica, despreocupadamente, o atirador estrangeiro, em Inglês.
- Você matou uma criança! E aparentava ter menos de 9 anos! - esbraveja outro dos assassinos estrangeiros, também em Inglês, nervoso.
- Ele poderia ter atirado em mim...
- Ele estava segurando uma lanterna!
- Parecia uma arma pra mim...

- Gostamos de usar armas 'vintage'... - gaba-se uma das assassinas estrangeiras.
Uma das cenas seguintes:
Assassino estrangeiro adentra o museu e, por entre as lendárias fotos das cabeças arrancadas de Lampião, Maria Bonita e seu bando, percebe armas antigas arrancadas da parede de exposição...
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A Direita nunca foi tão burra (por ignorância ou má-fé) - e isso só se pode lamentar (e combater)!

Este é meu petardo de bacamarte em resposta catártica a todas as críticas deselegantes, rasas, acéfalas e acusatórias de que o mais novo filme do pequeno gênio Kléber Mendonça Filho (dos excelentes O Som ao Redor e Aquarius) - agora, em codireção com o também pernambucano Júlio Dornelles - seria uma "resposta perigosa ao momento atual" (isto se chama criatividade artística!) "para agradar aos revoltados da Esquerda" (o bom Cinema não tem bandeiras: gera reflexão), "exaltaçao à barbárie", "justificando a violência e a vingança" "com personagens unidimensionais" e "situações exageradas" (isto se chama alegoria!), com tudo sendo mesmo um "grande pastiche do cinemão americano de filmes violentos" (isto se chama antropofagia cultural: o melhor do Faroeste norte-americano digerido pelas melhores influências do nosso Cinema Novo!), em que, "assustadoramente", a "plateia comemora cada morte dos vilões estrangeiros" (isto se chama catarse!), "celebrando a xenofobia"...

"Xenofobia"... Bem, aí já foi estupidez demais! Não, seus imbecis: ninguém está dizendo que todo alemão é nazista ("Isto é clichê demais!", reclama, a certa altura da trama, o antagonista - ops! - vivido pelo ótimo Udo Kier), nem que todo estadunidense é fascinado por armas, nem que todo sudestino ou sulista é camalha e preconceituoso... Mas, sim, existem muitas pessoas nesses lugares que são exatamente assim, sem um pingo de consciência ou empatia por outros povos e culturas, e contra o que elas representam se deve insurgir - não podemos deixar de existir porque um político decide exterminar irmãos negros quilombolas, índios e florestas inteiras em negociatas absurdas e pessoais com países imperialistas e selvagemente capitalistas! Nós continuamos no mapa e não somos os idiotas coitadinhos que precisam de mero "assistencialismo"! Nós somos o povo - de uma rua, uma comunidade, uma cidade "no cu do mundo"... Mas somos GENTE! E, herdeiros que somos, nós, Nordeste "de paraíbas", de heróis-marginais cangaceiros, às vezes nos lembramos que fogo tem que se combater com fogo!

Calma, cretinos: dado serem vocês incapazes de entender básicas figuras de linguagem de um discurso, ninguém está conclamando à revolução armada, tampouco fazendo apologia a crimes de assassinato (ainda que do opressor e em legítima defesa)! É um filme - e filme genial, obra-prima que marca e suscita o debate: tenho certeza de que não havia só "petralhas" e "comunistas" na sessão em que eu estava... E TODOS vivenciaram uma experiência única, porquanto ali, naquela tela, passava-se uma releitura da nossa História, ainda realidade em muitos rincões não mostrados pelas televisões e seus ricos interesses em jogos de poder - e, o que é melhor, uma releitura com personagens reais do povo, normalmente ignorados pela sociedade: a médica negra que volta às suas origens; o pistoleiro redimido e querido; a médica alcoólatra e lésbica (lindamente vivida por Sônia Braga, apesar da inconstância no sotaque); o travesti informante da comunidade (todos conectados, mas sem água); e, acima de todos, o "cangaceiro gay" Lunga (representatividade dentro e fora da tela: Silvério Pereira, impecável!), bandido que vira herói para um povo entregue à própria sorte, tal como surgiram muitos cangaceiros no nosso passado...

É Guimarães Rosa e Gláuber Rocha; É Howard Hawks, Peckimpah e Tarantino; é Cinema de Raiz antenado com a guerra contemporânea (a que já veio e a que está por vir)...

Todos os tipos possíveis de um país miscigenado e múltiplo que, como no poético monólogo de uma das primeiras cenas, feito pela espécie de conselheiro do vilarejo, Plínio (Wilson Rabelo, encabeçando um ótimo elenco de locais que remonta ao Neorrealismo italiano), vale-se de metonímia, por intermédio da figura da matriarca Dona Carmelita, para tratar do Brasil: ela, velada em um funeral que reúne toda a gente de Bacurau, é o nosso próprio país da "gente de bem" do povo (bem longe dos ricos abobalhados vestidos de camisa da Seleção defendendo juiz e procurador corruptos), que, assim como cada rincão de nossa terra mais pobre, pariu "médico, professor, michê, puta... que estão pelo Japão, na Europa, nos Estados Unidos, em Minas Gerais... Só não pariu ladrão"! De se lembrar ser bem mais fácil se ter ladrão entre os oportunistas da "gente de bem" de cima, entre os que começaram a cuspir lá da galeria, sem cerimônia, no povo simples da parte de baixo nesse teatro de horrores sórdido em que se tornou esse País! Por isso é urgente se acabar com essas fronteiras, direções e barreiras criadas justamente por eles ("Dividir para conquistar"...), a fim de nos fazer inimigos, criando anomalias sociais como "pobre de direita" e "mitos" gerados por fake news e arrotos fascistas de destruição e corrupção escancarada!

É Cinema, Carlos Vereza - e merecedor, sim, do cobiçado prêmio do júri no Festival de Cannes por mérito, seu artistinha vendido! Não é discussãozinha mequetrefe de bem remunerados youtubbers milicianos posando de indignados "defensores da família brasileira", restabelecendo censuras e "inimigos de Estado" numa área que deveria nos unir a todos, tal como sempre fez (até na Ditadura Militar!), que é a Cultura - que, por sua vez, como os próprios realizadores lembram no final do filme, "é indústria" e "emprega centenas de pessoas"! Não é Esquerda nem Direita: é POVO em preciosos simbolismos, que se valem de estéticas fortes pra conclamar, pela Arte, a resistir! E dá certo, uma vez que o grosso dos presentes se emocionou com a linda Fotografia das paisagens do sertão do Seridó (a Cidade é fictícia, mas filmada no Rio Grande do Norte); envolveu-se com a engenhosa construção do enredo com elementos arcaicos e modernos (bem ao gosto do Tropicalismo de Caetano e seus versos tocados com Não Identificado); adorou a ironia dos diálogos (risos e exclamações com essa que é das marcas de Kléber Mendonça: vide alguns no começo desta postagem); e gritou e vibrou com cada reação vitoriosa do povo de Bacurau contra o mundo dos mais sujos negócios, que almejam dominar a água, apagar o povoado do mapa (porque ninguém daria conta deles mesmo...) e vender seus moradores como carne de segunda para ávidos e sangrentos caçadores estrangeiros - aí, envolvendo um casal "do Sul" - simplesmente por diversão...

E posso garantir que esta plateia era mesmo heterogênea: de senhorinhas perfumadas e suas bolsas de grife a jovens nerds com suas camisetas Marvel, todos saíram visivelmente tocados e mudados com aquela epopeia viva e quente! Claro que muitos seguirão sem conhecer o Cinema Nacional e continuarão com seus preconceitos contra seus próprios irmãos pobres e nordestinos, achando-se muito mais próximos dos do Sudeste ou do Sul (ou, ainda pior, dos EUA!) e outros tantos ainda venham a bater palmas para censuras absurdas de larápios e suas falsas ideologias no Governo contra artes legítimas e para todos. Mas algo talvez os faça pensar melhor antes de repetir chavões sem muito raciocínio sobre o que está por trás de tudo isso que está aí... Tiro isso de um interessantíssimo contraste que pude observar durante a subida dos créditos, ao final da projeção: enquanto um casal jovenzinho se levantava chateado, no acender das luzes, resmungando que "esperaram uma cena final que não aconteceu" (maldita herança dos filmes de super-heróis!), uma mocinha, ainda mais jovem, quase ao meu lado e que também permanecera durante os créditos, não só conhecia como saiu cantarolando a pungente canção Réquiem para Matraga, de Geraldo Vandré - composta em 1965 para o filme A Hora e A Vez de Augusto Matraga, mas que ainda se mostra atual em sua crítica social!

Resta esperança - se houver resistência... E Arte, com qualidade e inteligência, ao alcance de todos!
União para não sucumbir - e, literalmente, sumir do mapa: viva Dona Carmelita! Viva o BRASIL!

NOTA DOS MORCEGOS:
Bacurau (BRA/FRA, 2019)
 

+ voam pra cá

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