
Quando eu era criança, ali pela terceira série primária, eu tinha um "privilégio", aliado a uma regra bem sólida, lá em casa: eu até podia ficar acordado para assistir a um dos programas de "tarde da noite" (e olha que, naquela época, assistir TV até "tarde" consistia em ir para cama bem mais cedo que hoje), mas desde que fosse apenas um dia da semana. Assim, naquele tempo, eu poderia escolher ou
Viva o Gordo, com o Jô Soares atuando como humorista em quadros fixos, às segundas, ou
Chico Anysio Show, com o Chico e suas centenas de caracterizações, às quartas. E nem adiantava quando, ardilosamente, escolhia ver o Jô logo no comecinho da semana, imaginando que, na quarta, minha mãe já se haveria esquecido e acabaria por me deixar ver o Chico também - só na quarta seguinte, se eu quisesse...
Pois bem, a "disputa" era boa (lembro que o povo costumava inventar uma "rivalidade" entre os dois, quem seria melhor, se Chico ou o Jô): ambos os programas eram legítimos representantes da tradicional escola brasileira do "humor de esquetes"; Jô Soares, longe do velho chato arrogante de hoje, era um grande humorista... Mas as quartas, normalmente, ganhavam nas minhas escolhas pueris: se costumo dizer que "aprendi a rir" com Charles Chaplin e Jerry Lewis (porque exibidos em sessões vespertinas, dominicais, quando desde tenra idade via TV com meus pais), obtive minha formação com o genial
Chico Anysio, aquele que era o próprio esquete!
Afinal, Chico era o homem das mil faces, vivenciando cada personagem e se transformando de tal forma que muitas vezes se esquecia que era ele por trás da maquiagem ou das vozes incríveis! E que vozes: se hoje tenho a facilidade de criar vozes, chegando a imitar alguns diletos cantores só de brincadeira, devo isso à escola daquele Mestre

, ele mesmo, um grande imitador - e tome imitação de Luiz Gonzaga na voz de Pantaleão; ou um sarro com o jeito carioca de falar de um conhecido aplicado no Azambuja etc.
E se muitas piadas eram "adultas" demais para mim naquela idade, com malícia ou carregadas de conteúdo político ou social, tudo se atenuava com personagens mais "infantis", como Cascata e Cascatinha ("Meu pai-pai... Meu 'garouto'"!), Bento Carneiro ("Do além, do aquém, 'de adonde' 'veve' os 'morto'"), Popó ("Idiooota"!), Silva ("'Bunitinho'"!) e Professor Raimundo ("E o salário, ó...!") - este, um caso à parte: o primeiro de todos, ainda na rádio, na década de 50, também foi o primeiro lançado na televisão, sendo o personagem mais humilde de Chico, porque não só servia de "escada" para outros brilharem como também alavancou inúmeros comediantes esquecidos (Grande Othelo, Walter Dávila, Brandão Filho, Zezé Macedo) ou lançou muitos novos talentos (Claudia Gimenez).
Um lado que pouca gente conhece é o seu como compositor: além do brilhante clássico
Rio Antigo (imortalizado na voz de Alcione), Chico Anysio ainda criou Baiano, uma sátira a Caetano, que, ao lado de Arnaud Rodrigues (Paulinho), viveu
Baiano e os Novos Caetanos e lançou alguns discos e vários sucessos inteligentes e de boa música pela dupla de personagens, como
Aldeia, Folia de Rei, Urubu tá com raiva do boi e o "clássico maior"
Vô batê pa tu. E, como meu pai possui até hoje o LP
Baiano e os Novos Caetanos, uma delícia rememorar estes clássicos da minha infância (juntamente ao já clássico tema de abertura dos programas desde a década de 80,
Hino ao Músico, cuja vinheta roda ao lado)...
Eu cresci, outros programas de humor surgiram, o "privilégio-proibição" foi-se atenuando (já na minha quinta série, eu poderia ver
TV Pirata acrescido aos outros dias notívagos, que não cessaram até hoje), mas só uma coisa não mudava: minha adoração pelo velho Chico e seus personagens fascinantes! Decerto que, com o passar do tempo e com as inúmeras transformações (mudanças e aumento no número de roteiristas, alterações nos programas e nos nomes -
Estados Anysios de Chico City,
Chico Total etc.), o ritmo daquele humor de esquetes foi perdendo o fôlego... Mas nada que o velho Chico não tirasse de letra: multifacetado, ele ainda seguiu genial em suas crônicas no
Fantástico (o programa era bom nessa época...), nos seus textos ("O brasileiro só tem três problemas: café, almoço e jantar"; "No Brasil de hoje, os cidadãos têm medo do futuro. Os políticos têm medo do passado" etc.), no Teatro (atuando ou dirigindo), com suas pinturas e seus livros, lançados aos borbotões (alguns interessantes; outros, nem tanto, somente com repetecos de quadros ou piadas tradicionais...), no Cinema (atuou em
Tieta, tendo participado de filmes em parceria com Grande Othelo e com o também genial Oscarito no passado) e na TV (no caso, a cretina Globo, que o manteve na geladeira por um bom tempo, fazendo apenas participações em novelas ou em especiais - sem contar o crime de colocá-lo no decrépito
Zorra Total).
Hoje a "moda" é o 'stand-up comedy', onda em que, guardadas as devidas exceções, muita gente sem muito talento tem embarcado, ainda que ignorando que um dos pioneiros nesse "humor de cara limpa" foi o velho Chico Anysio... Tempos em que o humor era feito por gente muito mais preparada para surfar no movediço terreno do politicamente correto sem as patrulhas moralistas caírem em cima... E agora me vai embora o Chico, numa triste morte anunciada (em seu último 'show' aqui em São Luís, a que tive prazer de assistir, atuou quase o tempo inteiro sentado, devido a problemas crônicos de respiração graças ao cigarro), sem graça, fazendo-me ainda mais nostálgico por dias antigos de uma infância repleta de personagens inesquecíveis (Alberto Roberto, Nazareno, Pantaleão, Bozó - todos morrendo com o seu autor...)!
E, falando em tempos idos e em gente cheia de talentos, nem bem terminava estas breves divagações sobre idos tempos cheios de bom humor inteligente, descubro que o velho
Millôr Fernandes morreu ontem, aos 88 anos... Morrem o jornalista, o escritor, o dramaturgo, o humorista, o tradutor: vai-se mais um homem de mil faces da minha rica infância, do tempo em que ria com ele na Veja (no tempo em que era inocente e lia esse lixo de jornalismo reacionário de extrema-direita), suas máximas geniais ("Chato: indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele", "O homem é um macaco que não deu certo" etc.) e adorava suas ilustrações multicoloridas e debochadas...
Não nego que adore esta nova geração cheia de gás, como Marcelo Adnet e Rafael Queiroga (respectivamente, o Chico Anysio e o Arnaud Rodrigues dos novos tempos), o Danilo Gentilli, o Marcelo Bonfá... Mas mesmo estes devem confessar que nada seriam sem mestres como o Chico (e, agora, o Millôr...) lá atrás, a marcar suas infâncias na melhor educação do humor brasileiro...
