segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Quase 100 anos de alguma coisa...

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O "fictício-real" Kane (Orson Welles, ator, roteirista, produtor e diretor da obra-prima):
Clássico absoluto, em belíssimo preto-e-branco, pisando em notícias velhas e artes efêmeras...

Não suporto quando algum locutor, televisivo ou radiofônico, vem a público com a pérola: "Fulano de Tal, se estivesse vivo, completaria hoje 150 anos"... Quem é que completa 150 anos de vida?! Matusalém, na sua tenra infância?! Tal "fenômeno" se dá por causa de uma ânsia pela generalização popular, quando o correto - para dizer o mínimo - seria apontar que se celebra, sobre o tal Fulano, "150 anos do seu nascimento" ou "150 anos de Fulano de Tal"! Simples assim! Ou será que o universo desses energúmenos e repetidores apresentadores vai ter de esperar a celebração de 300, 500 anos de alguém ilustre para, finalmente, poder perceber o ridículo de sua fala?!

Eis aí uma coisa que sempre me passou pela cabeça - quando e por que uma coisa se torna clássica... Depois de quantas gerações? Meio século, um século? Pela qualidade ou por causa de popularidade? Gostava de brincar com um antigo amigo do bairro sobre o dia, no futuro, em que se celebraria um filme daqueles que adorávamos na nossa infância e início de adolescência nos (hoje tão badalados) anos 80 da mesma forma que, à época, consideravam-se clássicos os filmes das décadas de 40 e 50... Somente 30, 40 anos então separavam aqueles títulos de nós, muitos deles ainda em preto-e-branco, e já havia todo um abismo cultural, tanto de qualidade quanto de preconceito, para com os viventes da nossa multicolorida década - "Nunca mais o Cinema verá um Casablanca, Cidadão Kane ou um A Doce Vida!"... "Ah, não: só vejo filme colorido"...!

Curiosamente, até o fator temporal acabou por ser relativizado na estratificação do que vem a ser um clássico... Especialmente em se observando o número de sequências, refilmagens e reboots de tantos filmes - aquele reinício de franquia: vide a nova trilogia Star Wars após inúmeros spin-offs em animações e quadrinhos, e, agora, Caça-Fantasmas, 35 anos depois voltando às origens com terceiro filme prometido para 2020 (após fracasso em recomeço com elenco feminino no ano retrasado)... No caso específico da Sétima Arte, 30/40 anos de alguma coisa já parece um mero salto, um piscar de olhos, sem o peso que havia antes, da "solenidade de algo do passado a se reverenciar"... Culpa dessa minha mesma geração oitentista, que parece não dar chance para algo envelhecer e guardar o distanciamento necessário para um clássico maturar... Esse povo "do século passado", atualmente povoando os "anos 10" dos 2000...

E pensar que, pouco mais de 100 anos atrás, nos anos 10 do século XX, a francesa invenção do Cinema, apesar de renomados sucessos europeus de então (como os italianos Quo Vadis e Cabíria, de 1912 e 1914), dava seus primeiros passos como arte e espetáculo nos EUA, sacramentando o futuro domínio de Hollywood sobre as produções mundiais com pioneiros como D. W. Grifith e suas inovadoras técnicas e narrativas filmadas aliadas a fortes esquemas de comercialização para exibição (em suma, o showbiz estadunidense) - embora se lastime que alguns desses primeiros ícones da linguagem cinematográfica tenham sido libelos racistas defensores da escravidão, da segregação racial e... da Ku Klux Klan: o tecnicamente inovador O Nascimento de Uma Nação, de 1915, recentemente lembrado por seu centenário, é um símbolo do que jamais poderia caracterizar um clássico - evidenciar-se ultrapassado em respeito a pessoas e questões sociais, polemicamente racista que foi mesmo para o tempo do seu lançamento!

E assim nos pegamos no começo de um novo século a explorar... Logo nós, que falávamos até outro dia, simplesmente, "anos 10", "anos 20", quando nos reportávamos longinquamente, mas ao nosso próprio século, tempo que, além de inúmeros avanços tecnológicos surpreendentes em período relativamente curto, viu também o nascer (justamente ali pelos anos 10 e 20...) e o morrer (finalzinho dos anos 90) de alguns de nossos entes mais caros, como os nossos avós... Logo nós, que tivemos que encarar duras mudanças com a leveza da fidelidade para com as nossas "rebeldias" contra as "securas" dos nossos pais... Justinho essa minha geração "quebrada", sufocada entre dois séculos: aflita com a velocidade das situações para as quais já não temos a mesma jovialidade de outrora, porém serena o bastante para nos pouparmos de qualquer aparente comprovação de velhice precoce nalgum "eu já vi tudo isso acontecendo"...

Se o vocábulo já foi único para descrever questões relacionadas à Grécia e seus períodos iniciais e puros de berço cultural e arquitetônico da civilização ocidental, hoje "clássico" pode permear qualquer item exposto no mercado, de algo artístico a artigo de comida ou bebida de alguma lanchonete com alguns anos de estrada - o que vai terminar por abalizar o que é ou não clássico será o próprio crítico, se com know-how suficiente naquela área ou se apenas um fanfarrão virtual patrocinado pelo selvagem capitalismo para afirmar que determinado produto já teria passado por básicos índices de tempo e qualidade a fim de atestar-lhe a classicize necessária! Aqui, neste humilde espaço virtual, no entanto, ater-nos-emos às boas e velhas "artes em geral"...

Porque, a despeito de novos conceitos e artistas reinventando a Arte, a nostalgia virou, sim, produto de mercado, passou a ser vendida pela internet e o passado virou moda entre os da nova geração -  ganhando o estiloso nome de vintage! Agora, eu e os meus iguais nos tornamos peça de decoração, motivo de curiosidade, "colecionador de relíquias", "testemunhas vivas da História" (ainda que recente, por favor...), acumuladores de causos e histórias - e já somos chamados de pais, alguns até de avós... Entretanto, não nos deixamos ser "clássicos", diante de tanta oferta e procura de "um tempo que não pode passar" em meio a tantos remakes e botox para os marmanjos com camisetas do Batman e a petizada ávida por novos lançamentos anabolizados! Talvez, se nos déssemos ao luxo do tempo decorrido, do perder, do ganhar, do deixar... Saberíamos envelhecer com nossos ídolos e suas obras atemporais...

É mais ou menos como diria a canção ("da minha época"): Somos tão jovens...! Por isso segue essa angústia, porquanto é justamente na Música que se pode perceber mais claramente como hoje se tragam clássicos e se regurgitam "releituras" a toque de caixa e aos borbotões para as "novas gerações": e, nesse esteio, a açucarada Sandy regravava, nos anos 2000, Como Nossos Pais (1976), da profundidade de um sempre compenetrado Belchior e imortalizada pela interpretação pungente de uma alucinada Elis Regina, para, logo depois, saracotear em suas apresentações bilionárias, ao lado do seu Juninho de estimação, ao som de "Vamo pulá, vamo pulá, vamo pulá"...

E, ainda na Música, universo infelizmente rico em violências contra a mulher, até hoje muitos criticam um legítimo clássico como Ai que Saudades da Amélia (1942), inadvertidamente tratando a personagem-título como uma tola submissa por "não ter a menor vaidade", sem perceber que a pequena obra-prima de Mário Lago e Ataulfo Alves jamais foi um hino machista, mas, sim, uma canção sobre companheirismo - e são os mesmos que facilmente entoam o mais novo e "divertido" hit do "pancadão carioca" ou do "sertanejo universitário" ou da "sofrência" sem sequer se darem conta dos tantos preconceitos, ofensas e ataques ao ser mulher ali contidos, a repetir, por aqueles bailes e shows homéricos, estereótipos como os reforçados na antiquíssima Emília, de Wilson Batista e Haroldo Lobo (1941) - este, sim, determinista do "lugar da mulher" como mãe, do lar e empregada doméstica não-remunerada do provedor da casa: "Eu quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar”, almejavam os compositores um ano antes da injustiçada Amélia!

Isso sem falar em regravações recentes, anos 2000 pra cá, de absurdos musicais de outrora, que mais servem para reforçar opressores machismos do que simplesmente relançar canções populares que deveriam ser esquecidas, como Ciúmes de Você (1968), de Luiz Ayrão e eternizada pelo falso "adorador da mulher" Roberto Carlos - e, assim, versos ridiculamente abusivos como "Se você me diz que vai sair/ Sozinha, eu não deixo você ir" acabam se "atualizando" em culto a falsos clássicos... E porque o sangrento Machismo não pode jamais ser celebrado nem se tornar vintage (apesar dos retrocessos políticos do sujo Brasil atual!), que clássicos ruins (sim, isso existe!) como esse sejam, muito em breve, deixados de lado, e outros mais perigosos, do naipe criminoso de Dá Nela! (Ary Barroso, 1930), Lá vem ela chorando (Ernâni Alvarenga, 1931)  e  Meu Dono, Meu Rei (Cyro Monteiro e Dias da Cruz, 1952), tenham a mesma sentença da sociedade que a expedida pelo TRF-4 em relação à teratológica Um tapinha não dói, condenando-a por incitar a violência física contra a mulher!

O que dizer, por outro lado, de uma arte jovem - e tão influenciada pelo mercado e pela sociedade - como os Quadrinhos? Como afirmar, com base em critérios objetivos acerca de qualidades artísticas, quando uma HQ seria um "clássico"? Aquela que melhor se ajusta entre as mentes nerds dos aficionados por anos a fio? Aquela que vende mais? Aquele arco que mais se aproxima de certos "cânones" das raízes previstas na criação original de determinado personagem? Difícil dizer... E como "agradar" seus leitores de tantas idades sem desagradar nichos e mais nichos em volta - como se deu com a complexa situação do livro A Sedução dos Inocentes, que simplesmente pôs em cheque a leitura de histórias em quadrinhos ao taxá-la de ação nada apropriada para menores de idade, público-alvo desse produto naquela já longínqua década de 1950? Resultado: a volta de mulheres fracas e "românticas" diante de heróis abobalhados em tramas ainda mais ridículas - tudo para não ferir a moral e os bons costumes da "boa família americana" (incômodo deja vú na atualidade)! Qualquer revista do período se classificaria para a posteridade mais pelo conturbado entorno do que pela pobreza de seus enredos e traços...

Talvez por isso é que alguns títulos acabaram entrando para a História por sua contestação e, ao mesmo tempo, sua real identificação com temas caros a determinados universos - tais como o Fantasma (primeiro herói fantasiado com collants), o Mandrake (que geraria uma infindável gama de personagens nele "inspirados", como Zatanna, na DC Comics e Doutor Fantástico, na rival Marvel) ou, o maior de todos, o sempre imitado Super-Homem, como ícones que, devidamente originais, até hoje determinam novos rumos e criações, e Watchmen (que sequer trata de super-heróis existentes, mas, sim, abordagens genericamente críticas ao mundo que sustenta tais criaturas poderosas de roupas extravagantes) ou O Cavaleiro das Trevas (que revisita e reinventa o Batman de uma forma alternativa, porém incrivelmente fiel ao octogenário encapuzado), como histórias-marcos, eternos clássicos das revistinhas!

O que evidencia, por fim, que tais conceitos de classificação elevada são extremamente voláteis por sobre o tempo que os influencia: por mais fixos e estáveis os critérios de avaliação sobre esse intento, o que hoje é considerado um clássico, amanhã pode ser completamente esquecível, dada a necessidade do crivo de novos aspectos sociais e até políticos por sobre o que assim será definido - e beneficiado pelo status quo midiático da vez, capaz de um afundamento de carreira ou de uma bem capitalista ressuscitação de boas vendas! Voltando à Nona Arte: se novidades de outrora, como o refazimento de todo o universo da DC desenvolvido em Crise nas Infinitas Terras marcou época, há muito se esfacelou como um clássico arco, em razão de, por tantas e tantas vezes, a mesma Editora já ter-se valido de ardis similares em "novas" historinhas "reformuladoras" que acabaram por se mostrar meros caça-niqueis das pobres almas quadrinísticas...

Titanic pode até ser considerado um clássico, dado o seu fenômeno mundial que merece um estudo antropológico diante de um filme tão bobo e clichê, e Romero Brito, de repente, possa igualmente ser estudado, séculos à frente, em como suas coloridinhas e superficiais releituras chinfrins de fortes referências nordestinas fizeram tanto sucesso por determinado período no mundinho fashion - facilmente perceptíveis como "clássicos-ruins", a manchar honráveis galerias maiores... No entanto, PlatãoDom Casmurro, Chico Buarque, Sentimento do MundoO Poderoso ChefãoChavesBatmanCharles Chaplin, entre outros pensadores, artistas e obras célebres, possuem inabaláveis cadeiras cativas no panteão das intocadas coisas imortais deste mundo, independentemente de gosto ou familiaridade... Enquanto as tolices, imitações ou simples repaginações mercantilizadas acabarão no fundo do baú da História!

Sendo assim, os próprios pseudopolíticos (assim como os seus bajuladores falsos religiosos e moralistas) que ora ocupam de forma espúria o Poder e, em meio a suas acéfalas ideologias, aparentemente ditam o que é e o que não deve ser Arte diante do que será ou não patrocinado ou divulgado pelas esferas governamentais, passarão - e serão facilmente esquecíveis, assim como juízes e promotores corruptos e destituidores de políticas e pilares -, no montante de Chicos, Gis, Caetanos, Mendonças Filhos e toda gama de grandes artistas cujas obras já nascem clássicas, tamanha a repercussão e o debate sócio-político etéreos e perenes a eles agregados de per si! Os cabelos ralos e o excesso de cansaços dos mais diversos matizes em cada poro já fazem de mim alguém dado com os clássicos, tanto em defini-los como em já vê-los acontecer, tantos os aniversários especiais e os centenários que já passam por mim - como os cem anos de nascimento de amados como Jackson do Pandeiro e Zélia Gattai... De se esperar só e tão somente que o futuro seja bom para com as Artes e, especialmente, que 15 anos sejam tempo hábil para, ao menos, tornar algo 'cult' - de repente, os Morcegos até possam, desde já, ser considerados um raro caso de clássico instantâneo...
Como Morcegos a voar... Por sobre Bacurau!
Cálice! Vai passar toda a sordidez.... 
E sobrará um povo classicamente forte a fim de arte que perdure...
 

+ voam pra cá

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