quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Infinito


– Diabolices, menina, diabolices...
Dizendo isso entre os dentes, foi a última coisa de que ele se lembrava ter dito a ela antes de se deixarem vencidos pelo cansaço do dia difícil. Lembrava-se ainda de tudo ter sido necessário para acalmar o coração dela, ansioso e angustiado para além do normal, sempre àquela hora da noite... Aquela era, sem dúvida, a hora mais difícil do dia, o confronto com a razão justamente na hora de deitarem-se (havia ainda, da parte dela, a hora da toalha entre os dentes, logo após o banho frio e cheio de dúvidas, mas dessa ele não participava pessoalmente...). De repente, ela veio, de pronto:
– Surpresa: lê isso, espero que gostes...
Ele leu tudo rapidamente, como sempre fez. Já era meio da tarde e o dia havia se arrastado para bem mais longe do que poderia esperar para pensar em poesia àquela hora, ainda pregado na cama...
– Não tem final...
– Como assim?
– Não tem final!
– Não precisa ter final! Filmes franceses não têm final!
– Não têm...?
A Professora de Piano...
– É... A Bela da Tarde talvez...
– Aqueles da trilogia das cores... Algo azul, algo vermelho...
– Do Kieslowski? A Liberdade é Azul pode até ser, mas A Fraternidade é Vermelha tem final, sim, aquele onde os personagens dos três filmes se encontram num barco...
– Ah, não sei... Pô, discutir final...
– Claro que não precisa de final, mas ficou chocho, não sei... Vinhas com certa profundidade e o final ficou bobo... Então é isso: tem final, mas é bobo!
– Merda, 'tou me sentindo mal...
– Por quê?
– Escrevi pra ti... Mas, tudo bem, eu me iludi como escritora, né? Bom me mostrares as falhas...
– Não 'tou criticando... Desculpa, não quis te atropelar... 'Tá bonito, poxa, fizeste pra mim...
– É sempre assim: as coisas giram em torno de ti: egocêntrico, insuportável! Só tu estás certo!
– Vem cá...
Não pôde se livrar de um tapa que ainda veio em sua direção, mas ele bem soube entrelaçá-la em seus braços ao ponto de desarmá-la: beijaram-se com sofreguidão e com a pré-anunciada saudade de saberem-se derradeiros num mundo sem razão... E o memorável clichê se seguia através da imagem das listras douradas de sol de final de tarde que as persianas entreabertas deixavam passar naquele quarto esquecido pelo tempo... À noite quase não se falaram e ele pegou seu avião; ela preferiu ficar em casa, despediram-se como se a tarde não houvesse existido. Falaram-se ainda muitas vezes pela 'internet' e brigaram ainda muitas vezes pelo telefone. Não-sei-quantas vezes terminaram e ansiaram e se reinventaram por tardes de luxúria como aquela que viveram naquele dia de filme francês... Tudo sem final...

Dilberto L. Rosa, agosto de 2009
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7 comentários:

Jens on 2 de setembro de 2009 às 12:26 disse...

Oi Dilberto.
Entre as várias precauções que os cavalheiros devem ter em relação as damas é jamais tecer críticas a um mimo por elas ofertado, seja uma camisa, um lenço, um par de meias ou um poema. O sexo frágil é refratário a manifestações desta natureza. Felizmente, teu conto teve um final(?) feliz.

Um abraço.

PS: legal o Raul aí ao lado.

dr x on 2 de setembro de 2009 às 18:20 disse...

Ei primo..ta escrevendo um livro
as mulheres são assim...querem total atenção e dedicação..por isso precisamos sempre estar atendos..um pequeno deslize....ficamos sem saber o final

abraços

dr x

Francisco on 2 de setembro de 2009 às 22:55 disse...

Li, reli, e li mais uma vez.
Confesso que tomei um susto.
Algo quase 100% igual me aconteceu bem recentemente.
Diz aí! Vc é advinho, bruxo, ou coisa parecida? rsrsrsrs
Um abração, cara!

(vou ler de novo...ainda não acredito!)

Dulce Miller on 2 de setembro de 2009 às 23:02 disse...

Eu gosto de histórias que aparentemente não tem final e também gosto de escrever coisas assim... às vezes ouço algumas reclamações tipo "pow, isso podia continuar, né?" hehehe, mas tudo bem, cada um interpreta da forma como lhe convém, não é assim?

Adorei a crônica!
Beijos

Anônimo disse...

Que amei, nem precisaria dizer.
O que me deixou boquiaberta foi a sua sensibilidade de narrar uma história que se passa, se passou com muitos e muitas de nós, inclusive eu.
Creio que, no meu caso, cansada de terminar, ansiar e reinventar, esteja já pronta para outra, aliás, outro!!
Bom final de semana...

Rosiane Bastos on 6 de setembro de 2009 às 19:17 disse...

Enquanto vida houver, o final vai ficando pra depois. O ponto final (.) é tão sem graça, prefiro reticiências (...)Uma história sem final deixa para a imaginação do leitor criar sua própria continuidade. O escritor deixa suas incertezas (qual será o fim?), medos (o que vão pensar?) e inseguranças (triste ou feliz?), serem reveladas quando resolve colocar reticiências (...). Minha história ainda não acabou, PONTO (.)Tenho algo ainda a dizer, um dia talvez, quem sabe? Pode ser só um começo...

LuRJ on 6 de setembro de 2009 às 23:17 disse...

Oi,Dilberto,
Que conto saboroso!Tudo se desenrolou de uma maneira sutil,delicada.Desse jeito nunca haverá final pq vc consegue reinventar motivos para que se continue.Pq será que depois das brigas os beijos são mais saborosos? Seu conto recriou uma vontade que quero esquecer.
Bjs...(estou te esperando no meu novo blog).

 

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