segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Para As Crianças...

E para Os Professores Também!


Azar


A gota caía. Sem cessar. Pingo por pingo, lentamente, como um conta-gotas, a água descia do teto umedecido diretamente na cabeça daquele menino. Coitado! Não conseguia fazer a prova. Ora o pingo caía em sua fronte, ora em sua sobrancelha direita, ora na própria prova, borrando suas poucas respostas já preparadas a caneta. Era inútil tentar continuar ali. Precisava mudar de lugar.

– Com licença, professora. Aqui tem uma goteira.
– Tudo bem. Mude-se, mas em silêncio – rigorosamente enfática –, e sente-se na frente de Eduardo.

Levantou-se, levando consigo sua tralha: o teste já borrado, seus lápis e suas canetas – duas que já nem escreviam direito – e todos os livros que mantinha debaixo da carteira. Supersticioso como só ele, Alfredo não podia deixar suas coisas no antigo lugar e buscar depois. Não, ele tinha que levar tudo consigo, para dar sorte na hora de fazer a prova. Afinal, ele começara aquela semana de testes com o mesmo arsenal em sua volta!

Uma última gota ainda caiu no lugar agora vazio. Só essa, tão logo o garoto acomodara-se em sua nova morada de tranqüilidade para o sossego daquela prova: a pequena poça que se houvera formado no teto começava a desaparecer lentamente e, com ela, a goteira que ali estava...

"Aquela quinta questão..." – pensava Alfredo sobre a questão mais difícil da prova. Levantou a vista para a porta entreaberta, donde se podia ver a chuva que caía lá fora. Aquela chuva... Aquele vento, aquele frio... Assim ele seguia, com seus pensamentos indo, caminhando longe como quando se faz uma prova difícil num dia chuvoso, até que, repentinamente, o menino foi despertado por uma gota fria em sua testa! Num rápido reflexo, levantou-se e ficou parado, fora de alcance, olhando para cima, como que renitente em acreditar em tamanha perseguição: agora uma pequena goteira havia-se formado por sobre o seu novo lugar! Não havia jeito! Não havia como fugir!

– Que raio de escola! – retrucou em tom baixo.
– Como disse? – a professora, em tom áspero.
– A chuva cai lá fora e aqui dentro! Não dá pra fazer prova desse jeito!

Alfredo ainda olhou para a sua prova em cima da carteira, num breve momento de escapismo naqueles segundos sem comunicação com a mestra, a esperar que ela autorizasse novamente a sua mudança de lugar. As gotas, mais rápidas que da primeira vez, já encharcavam o assento vazio.

– Ninguém até agora reclamou de goteira, só você!
– Não 'tou criando caso! Só queria que dessem um jeito nessa sala!
Realmente. Ninguém costumava reclamar de mazelas daquela turma, só Alfredo. Ainda mais em dia de chuva.
– Está bem, está bem... Mude-se pela segunda e última vez! Venha até aqui!

Alfredo seguiu em sua direção, agora deixando de vez seu material esquecido, a molhar nas gotas. Já nem se importava mais com aquelas crenças infantis do alto de seus 11 anos... Passava enfim por sua prova de fogo! Ou de água!

– Sente-se aqui e termine a sua prova! – sentenciou, impaciente, D. Ramy, levantando-se de seu humilde trono, a respeitada cadeira da professora.

Por um instante, Alfredo a fitou. Fitou a turma. Alguns o observavam, dada toda aquela chateação de tantas trocas de lugares. Outros continuavam na prova, sem nem se dar conta daquela enorme comédia de erros que se passava na turma. Eles é que estavam certos. Seguiam preocupados demais com a quinta questão...

Mas Alfredo não tinha culpa. E timidamente ainda olhou por uma última vez para a mestra, como que a dizer um envergonhado "obrigado" com o olhar. Depois observou o último lugar abandonado: o material molhado, o charco da cadeira e o teto... Engraçado, parecia que o teto havia secado...

D. Ramy, dando as costas para o azarado menino, virou-se para a turma. Alfredo, enfim, instalava-se, sozinho e de frente para os seus colegas. Sentiu-se estranho por um momento, um paria. Depois, abaixando a vista, conseguiu concentrar-se outra vez na prova e até pensar na quinta questão.

Parece piada, mas neste preciso momento uma gota caiu exatamente no número "cinco"! O pobre soltou um leve, porém contínuo "ai"! A professora, como que tendo uma premonição, virou-se instintiva. Ao que Alfredo, ao levantar o rosto para sondar a nova inimiga, recebeu do alto um pedaço do forro em sua cabeça. Coitado!

Os meninos, quase que em sincronia, deixaram a quinta questão e se desancaram a rir do pobre diabo, que agora chorava com as mãos na testa, deixando à mostra dos escárnios o cabelo todo salpicado de cal. A professora observava tudo com uma cara em que se misturavam pena e surpresa. Que azar!

As gotas seguiam continuamente, sem cessar, agora com muito mais pressa e força, diretamente na cabeça daquele menino vencido. Chovia dentro e lá fora...


(Dilberto Lima Rosa, A Prosa de Meu Agora Outrora, 2005)
 

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