segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Quase 100 anos de alguma coisa...

O "fictício-real" Charles Foster Kane (Orson Welles, ator, roteirista, produtor e diretor de Cidadão Kane, obra-prima inspirada na vida do magnata da imprensa americana William Randolph Hearst):
Clássico absoluto, em belíssimo preto-e-branco, pisando em notícias velhas e artes efêmeras...

Não suporto quando algum locutor, televisivo ou radiofônico, vem a público com a pérola: "Fulano de Tal, se estivesse vivo, completaria hoje tantos anos"... Quem é que anda completando 120 anos de vida?! À exceção de umas 2 ou 3 pessoas no mundo, talvez Matusalém, na sua tenra infância?! O correto, para dizer o mínimo, seria apontar que se celebra, sobre o tal Fulano, "120 anos do seu nascimento" ou "120 anos de Fulano de Tal"! Simples assim! Ou será que o universo desses repetidores apresentadores vai ter de esperar a celebração de 200 ou 300 anos de alguém ilustre para, finalmente, perceber o ridículo de sua fala?!

Eis aí uma coisa que sempre me fascinou: deixar um legado. Algo que permita uma marca pela passagem neste mundo caótico e indiferente... Por quanto tempo? 50, 100 anos, para sempre...? Afinal: quando e por que uma coisa se torna clássica? Depois de quantas gerações? Pela qualidade ou por causa da popularidade? Gostava de brincar com um antigo amigo do bairro sobre o dia, no futuro, em que se celebraria como clássico um filme daqueles que adorávamos na nossa infância e início de adolescência nos badalados anos 80, da mesma forma que à época consideravam-se clássicos os filmes das décadas de 40 e 50... Somente 30, 40 anos então separavam aqueles títulos de nós, muitos deles em preto-e-branco, e já havia todo um abismo cultural em relação aos viventes da nossa multicolorida década: "Nunca mais o Cinema verá um Casablanca, Cidadão Kane ou um A Doce Vida!"... "Ah, não conheço: só vejo filme colorido"...!

Curiosamente, até o fator temporal acabou por ser relativizado na estratificação do que vem a ser um clássico. Especialmente, no caso do Cinema, em se observando o número de sequências, refilmagens e reboots (reinício de franquia) de tantos filmes: vide a nova trilogia Star Wars após inúmeros spin-offs em live-actions, animações e quadrinhos, e, agora, Caça-Fantasmas, 35 anos depois voltando às origens com terceiro filme prometido para 2020 (após fracasso em recomeço com elenco feminino no ano retrasado). No caso específico da Sétima Arte, 30/40 anos de alguma coisa já parece um mero salto, um piscar de olhos, sem o peso que havia antes, da solenidade "de algo do passado a se reverenciar"... Culpa dessa minha mesma geração oitentista, que parece não dar chance para algo envelhecer e guardar o distanciamento necessário para um clássico maturar... Esse povo saudosista "do século passado", atualmente povoando os "anos 10" dos 2000!

E, falando em anos 10, de se pensar que, pouco mais de 100 anos atrás, no início do século XX, a francesa invenção do Cinema, apesar de renomados sucessos europeus de então (como os italianos Quo Vadis e Cabíria, de 1912 e 1914), já caminhava a passos largos como arte e espetáculo nos EUA. Então, dessa época, tudo é clássico? Bom, para além da qualidade e do tempo da obra, indispensável que se considere o que aquela arte defende, especialmente hoje, em tempos de cancelamentos virtuais! Tomemos um exemplo de 1915,  O Nascimento de Uma Nação, do pioneiro D. W. Grifith: se suas inovadoras técnicas e narrativas filmadas o firmam no panteão dos filmes memoráveis da História, sua trama racista, defensora da segregação racial (e da Ku Klux Klan!), acaba como um símbolo do que jamais poderia caracterizar um clássico! Então, como classificar: "Clássico ultrapassado", "meio-clássico" ou "obra merecedora do lixo da História"?

Difícil dizer... E assim nos pegamos no começo de um novo século a explorar, com todas as suas particularidades. Logo nós, que falávamos até outro dia, simplesmente, "anos 10", "anos 20", quando nos reportávamos longinquamente a uma data do nosso próprio século, tempo que, além de inúmeros avanços tecnológicos surpreendentes em período relativamente curto, viu também o nascer (justamente ali pelos anos 10 e 20...) e o morrer (finalzinho dos anos 90) de alguns de nossos entes mais caros, como os nossos avós... Logo nós, que tivemos que encarar duras mudanças com a leveza da fidelidade para com as "rebeldias" dessa nossa geração "quebrada" entre dois séculos: aflita com a velocidade das novidades para as quais já não temos a mesma jovialidade de outrora, porém serena o bastante para nos pouparmos de qualquer aparente comprovação de velhice precoce nalgum "eu já vi isso" ou no infame "na minha época"...

Se o vocábulo já foi único para descrever aspectos culturais e arquitetônicos relacionados à Grécia e seu período pré-Helenístico (classicus, relativo a "classe" ou "divisão superior"), passando pela classificação da música sinfônica dos séculos XVIII e XIX, hoje o termo "clássico" pode permear qualquer item exposto no mercado, de algo artístico, produto da moda a artigo de comida ou bebida de alguma lanchonete com alguns anos de estrada (since tal data!): o que vai terminar por abalizar o que é ou não clássico seria um crítico, com know-how suficiente naquela área, ou apenas um fanfarrão virtual patrocinado pelo selvagem capitalismo nosso de cada dia... Já por aqui, neste humilde espaço virtual, no entanto, ater-nos-emos às boas e velhas "artes em geral"!

Porque, a despeito de novos conceitos e artistas reinventando a Arte, a nostalgia virou, sim, produto de mercado, passou a ser vendida pela internet e o passado virou moda entre os da nova geração,  ganhando o estiloso nome de vintage! Agora, tudo é "clássico", em meio a tantos remakes para os marmanjos com saudade da infância e a petizada ávida por novos lançamentos anabolizados! Talvez, se nos déssemos ao luxo do tempo decorrido, do perder, do ganhar, do deixar... Saberíamos envelhecer melhor com nossos símbolos, ídolos e suas obras atemporais!

É mais ou menos como diria a canção ("da minha época"): Somos tão jovens...! Por isso segue essa angústia quando se tragam clássicos verdadeiros e se regurgitam "releituras" a toque de caixa e aos borbotões para as "novas gerações"       , a manchar honráveis galerias maiores... No entanto, PlatãoDom Casmurro, Chico Buarque, Sentimento do MundoO Poderoso ChefãoChavesBatmanCharles Chaplin, entre outros pensadores, artistas e obras célebres, possuem inabaláveis cadeiras cativas no panteão das intocadas coisas imortais deste mundo, independentemente de gosto ou familiaridade... Enquanto as tolices, imitações ou simples repaginações mercantilizadas acabarão no fundo do baú da História!

Os cabelos ralos e o excesso de cansaços dos mais diversos matizes em cada poro já fazem de mim alguém dado com os clássicos, tanto em defini-los como em já vê-los acontecer, tantos os aniversários especiais e os centenários que já passam por mim - como os cem anos de nascimento de amados como Jackson do Pandeiro e Zélia Gattai... De se esperar só e tão somente que o futuro seja bom para com as Artes e, especialmente, que 15 anos sejam tempo hábil para, ao menos, tornar algo 'cult' - de repente, os Morcegos até possam, desde já, ser considerados um raro caso de clássico instantâneo...

terça-feira, 24 de setembro de 2019

CISMA


Corredor estreito de grande livraria de shopping  imensidão de possibilidades em imersão no microcosmo temporal de um casal de longa data que aprendeu a se amar conversando e agora se perdia em meio a quadrinhos, mochilas escolares, globos terrestres, miniaturas, jogos para computador, CDs, DVDs, BDs, relógios de parede... e livros.

– Com licença...
– Toda... Olha só: esse livrinho é daquele autor de tiras dos anos 80 de quem te falo tanto...
– Quem...?
– Aquele, que era o maior machista e que agora é trans...
– Acho que sei quem é...
– O que foi? Estás tão enfadada...
– Não é isso... Já tem quase uma hora que estás pra trocar aquele relógio com defeito... Por que não trocas por outro relógio e vamos embora?
– Porque isso aqui é uma livraria: e, apesar das tantas bugigangas à venda, parece que o forte deles ainda são os livros! Não quero ter que voltar aqui pra trocar outro relógio de parede pífio, por mais bonito que seja...
– ...
– Que foi...?
– Nada... E então: vai ser esse das tirinhas?
– Não sei... Só 'tava te mostrando... Mas parece que estás de saco cheio de estares aqui...
– Não é isso! Só queria aproveitar o resto da noite ao invés de passá-la inteira aqui!
– Não precisa ser grosseira...
– Não estou sendo... Juro que não!
– ...
– Quanto falta pra completar o valor do relógio? Com esses dois livrinhos na tua mão não é possível efetivar a troca? Ainda falta muito para completar o valor? Por que não pegas logo um que ultrapasse o preço do relógio? Aí fica fácil, só pagar o excedente e...
– Credo, calma!
– 'Tá bom, 'tá bom...
– Ei, espera, por que estás te afastando...? Sério, vais mesmo sair de perto de mim e te sentar naquelas poltronas...?!

– Ei, eu...
– Oi?! Não, você me abandonou lá atrás, lembra? Foste te sentar!
– Estava cansada... Dores nas pernas, aqueles dias, sabe...
– Não – se fosse mesmo isso, nada impedia de você ao menos pedir licença...
– Como o monte de gente tentando passar pelos corredores onde você criou raiz, né?
– Com licença...
– Olha aí...!
– Ah, que bom: finalmente a máscara caiu! O problema é comigo!
– Não tem nada a ver com máscara ou com abandono: já tem tempo demais, só isso!
– Muito tempo mesmo... Engraçado: agora, não suporta sequer me ajudar a decidir, sabendo junto dos títulos daqui, mas, no começo do namoro, era "Nunca vou enjoar de você", "Adoro teres história pra tudo", "Estar com você em qualquer lugar é uma delícia", "Com você, até lista de supermercado é Literatura"...
– Chega, já entendi... E discordo! Não 'tou entediada nem abusada de você, não tem nada a ver isso tudo que você está falando: eu só queria ir logo jantar, daqui a pouco temos que ir pegar as crianças na casa da tua mãe e tu bem sabes como ela é se chegamos muito tarde, vai logo dizendo que estava com sono e demoramos muito...
– Ah, tá: agora, a culpa é de mamãe!
– Ai, 'tá vendo só?! Tudo você deturpa e inverte as coisas contra mim: quanta insegurança... O que foi agora, pode me dizer?!
– Esquece! Lembra esse aqui...? A adaptação dele para o Cinema foi o primeiro filme que vimos juntos... E o engraçado é que não tenho esse livro...
– Pronto, resolvido: então é esse, né? Posso ir na frente, levando para a moça tirar a nota enquanto vais logo pra fila e...
– Olha isso, menina! Escancarou de vez a impaciência! Nem ligou para a importância da obra no nosso relacionamento, com essa obsessão em ir embora! Só não vou nesse exato instante porque a maldita nota de troca eles fazem só pra hoje e brigar por causa disso daria muita dor de cabeça!
– ...
– Isso, vai te sentar e me deixa aqui, sozinho...
– Não é isso: já te mostrei aqueles encadernados de Quadrinhos...
– Arte ruim!
– Aqueles livros daquele poeta que você adora...
– Tenho muitas coletâneas dele que reúnem quase a obra toda...
– Aqueles discos...
– Fracos!
– Os livros da seção de biografias...
– Todos muito caros nesse lugar: encontro mais baratos na internet!
– Olha só... Até as atendentes já passam com sorrisinho no rosto: viramos folclóricos aqui! Cansei...
– Melhor eu me afastar e escolher sem pressão em outro corredor...

– Sério: faltam 5 minutos pra eles fecharem...! Não 'tou legal, você já está me botando em mil caixinhas rotuladas de impaciente e sem companheirismo, não quero brigas nem discussão, só queria um passeio à toa...
– Feliz aniversário...
– Ah, 'tou vendo: "Feliz Aniversário", aquele livro de crônicas que você sempre quis, mas nunca achou... Aproveita a promoção...
– Não! Feliz aniversário: 12 anos... Parabéns! Você esqueceu... E esse aqui era o livro de presente que eu queria dar pra você, de surpresa, pelo dia de hoje... 
– ...

Enquanto se encaram em silêncio e entre algumas lágrimas furtivas, aos poucos os olhos vão se pondo, o estreito corredor vai se ampliando e evidenciando um verdadeiro labirinto, que aos poucos fica vazio, com todas as até então gritantes luzes holofóticas se apagando gradativamente, até somente um facho manter em evidência aquele casal sem mais a fazer ou dizer além de restarem os dois presos naquele ponto, refletidos pelos vários espelhos do local que a tudo ampliavam...

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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Bacurau somos nós!

Cena de abertura:
Caminhão pipa, que traz os primeiros interlocutores do filme, passa por cima e destrói alguns caixões espalhados pela estrada, frutos de um acidente entre um caminhão carregando mais caixões e uma moto, conforme se vê na cena seguinte.
Uma das cenas seguintes:
Prefeito em campanha a reeleição chega em comitiva e encontra todo o povoado de Bacurau escondido, sem ninguém para recebê-lo. Em seguida, manda um de seus asseclas começar a filmar o momento em que fará uma "grande doação de livros, comida e remédios para a comunidade": centenas de livros velhos e usados são despejados como lixo de uma caçamba, em frente à biblioteca local; e caixas e mais caixas contendo comidas com prazo de validade vencido (em até 6 meses) e medicamentos tarja-preta são amontoadas na praça central.

- O nosso museu é excelente... - apresenta um dos moradores do povoado.

- E quem nasce em Bacurau é o quê? - pergunta a forasteira carioca, com enfado.
- É GENTE! - responde, com rapidez, o garotinho no bar.

- Temos orgulho do nosso museu, é dos melhores da região... Venha conhecer nossa História... - menciona Pacote.
- Museu?! Ah, não 'tou interessada, 'brigada! Estamos só de passagem... - responde a carioca, ainda com desdém.

- Mas vocês não estavam autorizados a fazer isso: vocês mataram pessoas do seu povo! - reclama o líder alemão dos assassinos estrangeiros, em Inglês.
- Não somos iguais a eles; somos muito mais parecidos com vocês: somos brancos! - vocifera, também em Inglês, a mulher carioca.
- Vocês?! Iguais a NÓS?! Rá, rá, rá, rá, rá, rá, rá, rá! - riso escrachado geral entre os assassinos estrangeiros - Você, com esse nariz e esses lábios?! E você, com essa pele mais morena...?! VOCÊS SÃO LATINOS! JAMAIS SERÃO COMO NÓS! - encerra o líder.

- Ele parecia ter uns 16 anos... - explica, despreocupadamente, o atirador estrangeiro, em Inglês.
- Você matou uma criança! E aparentava ter menos de 9 anos! - esbraveja outro dos assassinos estrangeiros, também em Inglês, nervoso.
- Ele poderia ter atirado em mim...
- Ele estava segurando uma lanterna!
- Parecia uma arma pra mim...

- Gostamos de usar armas 'vintage'... - gaba-se uma das assassinas estrangeiras.
Uma das cenas seguintes:
Assassino estrangeiro adentra o museu e, por entre as lendárias fotos das cabeças arrancadas de Lampião, Maria Bonita e seu bando, percebe armas antigas arrancadas da parede de exposição...
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A Direita nunca foi tão burra (por ignorância ou má-fé) - e isso só se pode lamentar (e combater)!

Este é meu petardo de bacamarte em resposta catártica a todas as críticas deselegantes, rasas, acéfalas e acusatórias de que o mais novo filme do pequeno gênio Kléber Mendonça Filho (dos excelentes O Som ao Redor e Aquarius) - agora, em codireção com o também pernambucano Júlio Dornelles - seria uma "resposta perigosa ao momento atual" (isto se chama criatividade artística!) "para agradar aos revoltados da Esquerda" (o bom Cinema não tem bandeiras: gera reflexão), "exaltaçao à barbárie", "justificando a violência e a vingança" "com personagens unidimensionais" e "situações exageradas" (isto se chama alegoria!), com tudo sendo mesmo um "grande pastiche do cinemão americano de filmes violentos" (isto se chama antropofagia cultural: o melhor do Faroeste norte-americano digerido pelas melhores influências do nosso Cinema Novo!), em que, "assustadoramente", a "plateia comemora cada morte dos vilões estrangeiros" (isto se chama catarse!), "celebrando a xenofobia"...

"Xenofobia"... Bem, aí já foi estupidez demais! Não, seus imbecis: ninguém está dizendo que todo alemão é nazista ("Isto é clichê demais!", reclama, a certa altura da trama, o antagonista - ops! - vivido pelo ótimo Udo Kier), nem que todo estadunidense é fascinado por armas, nem que todo sudestino ou sulista é camalha e preconceituoso... Mas, sim, existem muitas pessoas nesses lugares que são exatamente assim, sem um pingo de consciência ou empatia por outros povos e culturas, e contra o que elas representam se deve insurgir - não podemos deixar de existir porque um político decide exterminar irmãos negros quilombolas, índios e florestas inteiras em negociatas absurdas e pessoais com países imperialistas e selvagemente capitalistas! Nós continuamos no mapa e não somos os idiotas coitadinhos que precisam de mero "assistencialismo"! Nós somos o povo - de uma rua, uma comunidade, uma cidade "no cu do mundo"... Mas somos GENTE! E, herdeiros que somos, nós, Nordeste "de paraíbas", de heróis-marginais cangaceiros, às vezes nos lembramos que fogo tem que se combater com fogo!

Calma, cretinos: dado serem vocês incapazes de entender básicas figuras de linguagem de um discurso, ninguém está conclamando à revolução armada, tampouco fazendo apologia a crimes de assassinato (ainda que do opressor e em legítima defesa)! É um filme - e filme genial, obra-prima que marca e suscita o debate: tenho certeza de que não havia só "petralhas" e "comunistas" na sessão em que eu estava... E TODOS vivenciaram uma experiência única, porquanto ali, naquela tela, passava-se uma releitura da nossa História, ainda realidade em muitos rincões não mostrados pelas televisões e seus ricos interesses em jogos de poder - e, o que é melhor, uma releitura com personagens reais do povo, normalmente ignorados pela sociedade: a médica negra que volta às suas origens; o pistoleiro redimido e querido; a médica alcoólatra e lésbica (lindamente vivida por Sônia Braga, apesar da inconstância no sotaque); o travesti informante da comunidade (todos conectados, mas sem água); e, acima de todos, o "cangaceiro gay" Lunga (representatividade dentro e fora da tela: Silvério Pereira, impecável!), bandido que vira herói para um povo entregue à própria sorte, tal como surgiram muitos cangaceiros no nosso passado...

É Guimarães Rosa e Gláuber Rocha; É Howard Hawks, Peckimpah e Tarantino; é Cinema de Raiz antenado com a guerra contemporânea (a que já veio e a que está por vir)...

Todos os tipos possíveis de um país miscigenado e múltiplo que, como no poético monólogo de uma das primeiras cenas, feito pela espécie de conselheiro do vilarejo, Plínio (Wilson Rabelo, encabeçando um ótimo elenco de locais que remonta ao Neorrealismo italiano), vale-se de metonímia, por intermédio da figura da matriarca Dona Carmelita, para tratar do Brasil: ela, velada em um funeral que reúne toda a gente de Bacurau, é o nosso próprio país da "gente de bem" do povo (bem longe dos ricos abobalhados vestidos de camisa da Seleção defendendo juiz e procurador corruptos), que, assim como cada rincão de nossa terra mais pobre, pariu "médico, professor, michê, puta... que estão pelo Japão, na Europa, nos Estados Unidos, em Minas Gerais... Só não pariu ladrão"! De se lembrar ser bem mais fácil se ter ladrão entre os oportunistas da "gente de bem" de cima, entre os que começaram a cuspir lá da galeria, sem cerimônia, no povo simples da parte de baixo nesse teatro de horrores sórdido em que se tornou esse País! Por isso é urgente se acabar com essas fronteiras, direções e barreiras criadas justamente por eles ("Dividir para conquistar"...), a fim de nos fazer inimigos, criando anomalias sociais como "pobre de direita" e "mitos" gerados por fake news e arrotos fascistas de destruição e corrupção escancarada!

É Cinema, Carlos Vereza - e merecedor, sim, do cobiçado prêmio do júri no Festival de Cannes por mérito, seu artistinha vendido! Não é discussãozinha mequetrefe de bem remunerados youtubbers milicianos posando de indignados "defensores da família brasileira", restabelecendo censuras e "inimigos de Estado" numa área que deveria nos unir a todos, tal como sempre fez (até na Ditadura Militar!), que é a Cultura - que, por sua vez, como os próprios realizadores lembram no final do filme, "é indústria" e "emprega centenas de pessoas"! Não é Esquerda nem Direita: é POVO em preciosos simbolismos, que se valem de estéticas fortes pra conclamar, pela Arte, a resistir! E dá certo, uma vez que o grosso dos presentes se emocionou com a linda Fotografia das paisagens do sertão do Seridó (a Cidade é fictícia, mas filmada no Rio Grande do Norte); envolveu-se com a engenhosa construção do enredo com elementos arcaicos e modernos (bem ao gosto do Tropicalismo de Caetano e seus versos tocados com Não Identificado); adorou a ironia dos diálogos (risos e exclamações com essa que é das marcas de Kléber Mendonça: vide alguns no começo desta postagem); e gritou e vibrou com cada reação vitoriosa do povo de Bacurau contra o mundo dos mais sujos negócios, que almejam dominar a água, apagar o povoado do mapa (porque ninguém daria conta deles mesmo...) e vender seus moradores como carne de segunda para ávidos e sangrentos caçadores estrangeiros - aí, envolvendo um casal "do Sul" - simplesmente por diversão...

E posso garantir que esta plateia era mesmo heterogênea: de senhorinhas perfumadas e suas bolsas de grife a jovens nerds com suas camisetas Marvel, todos saíram visivelmente tocados e mudados com aquela epopeia viva e quente! Claro que muitos seguirão sem conhecer o Cinema Nacional e continuarão com seus preconceitos contra seus próprios irmãos pobres e nordestinos, achando-se muito mais próximos dos do Sudeste ou do Sul (ou, ainda pior, dos EUA!) e outros tantos ainda venham a bater palmas para censuras absurdas de larápios e suas falsas ideologias no Governo contra artes legítimas e para todos. Mas algo talvez os faça pensar melhor antes de repetir chavões sem muito raciocínio sobre o que está por trás de tudo isso que está aí... Tiro isso de um interessantíssimo contraste que pude observar durante a subida dos créditos, ao final da projeção: enquanto um casal jovenzinho se levantava chateado, no acender das luzes, resmungando que "esperaram uma cena final que não aconteceu" (maldita herança dos filmes de super-heróis!), uma mocinha, ainda mais jovem, quase ao meu lado e que também permanecera durante os créditos, não só conhecia como saiu cantarolando a pungente canção Réquiem para Matraga, de Geraldo Vandré - composta em 1965 para o filme A Hora e A Vez de Augusto Matraga, mas que ainda se mostra atual em sua crítica social!

Resta esperança - se houver resistência... E Arte, com qualidade e inteligência, ao alcance de todos!
União para não sucumbir - e, literalmente, sumir do mapa: viva Dona Carmelita! Viva o BRASIL!

NOTA DOS MORCEGOS:
Bacurau (BRA/FRA, 2019)

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Quase Ilha Menina



Olhando-a assim
Ao longe e por cima
Ela até parece um coração

Pulsação antiga
Quase ilha menina
Amor-Açu
Pequena de grandes proporções
De curvas e reentrâncias
Tão ela
Paixão escondida em cada esquina
Mais parece enorme caravela
Pronta para desbravar
Pelo mar

À deriva
Adoece de perdida
Sua doce e pobre loucura suspensa
A me perturbar
Por sobre telhados
Pesa o ar em volta e congela
O passado
Às vezes volta
Para assombrar
De carruagem, por galerias
Pronto para apertar ainda mais
Cada viela
E me sufocar

Pelas ruas esquecidas
Faz amor encantada
O que foi isso
Canto de praia
Volta lagoa com vista pro mar
Entorpecida Cantaria
Cada delícia de gesto dela
É gostoso de lembrar

Terra de pele macia
Branca areia gostosa
De frutos e gostos e nomes
Só dela
Tão meus
Só daqui
Isolados pelo vento:
Beiju de cuxá
Beijos de buriti e cupuaçu
Moqueca de juçara
Caranguejo no azulejo
Sexo doce de bacuri
Camarão ante o babaçu
Torta de amadurecimento
Moqueca de contemplação
Hidratante esfoliante de murici

Olhando-a assim
En passant
Crescendo e crescida
Até parece um croissant
Que, desinibida e à francesa
Nasceu pra ser

Certeza
Que ela é toda diferente
É japonesa gueixa
Bunda negra regueira
Musa italiana
Esfirra árabe com alho e sal
Tantas é como gente

Entre horizontes e pontes
Da periferia ao Centro
Em fins de tarde quentes
Renascendo do olho d'água
Pelos calhaus refinados
Catacumbas lambadas de serpente
Até o fim cemitério
Choro nas mãos da Mãe de Deus
Eu a conheço por inteiro
Cada recôndito
Segredo e mistério
São meus
Não mente
Simplesmente são

Olhando-a assim
Parece até o punho fechado
De minha mão

(Dilberto L. Rosa, setembro de 2019)


Ilha que cresce mulher e amor em cada canto: uma pequena homenagem aos 407 anos de São Luís.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Uma Antologia Profana


Deus!

Cheguei
Bradei
Machuquei-me
Quebrei-me
Briguei
Sentei
Refleti...
Desisti
– Do que adianta,
(Eles são incontáveis...)
Se do motorista mais vagabundo
Ao mais imundo psicanalista
Imensa é a lista dos irremediáveis?!

Levantei e
Procurei chão
Tateando, ainda assustado,
Na escuridão...
– Ai, meu amor: o mundo é dos filhos da puta!
(Mundo mais machista:
Que culpa têm as pobres putas
Mães guerreiras de chauvinistas
Filhos do Cão?)
Sigo desnorteado
Já quase não tenho onde pousar
Entre as engrenagens opressoras
Desse sistema niilista:
Quando é que essa horda
De mídia de merda capitalista
Há de parar
De criar suas bostas
De heróis fabricados?!

Nada presta...
Ninguém presta...
Só acompanho
Só cheiro, vejo, ouço e adivinho
– Já que nada mais nos resta
Antes de gozar e dormir
Além desse vinho amargo de engolir,
Dancemos ao som
De qualquer nota desse bolero
De nosso amor si bemol
Que, lá fora,
Nossos filhos já se dão
Em rol, no ponto de nos carpir
Enquanto dormimos de olhos abertos
(Antes mesmo de estarmos certos
De qualquer deles existir...)

– E você realmente
Ainda pensa
Com fé e inocência
Em gente honesta
E competente,
Em dinheiro amaldiçoado
E em perda de paz?
(Uma pena...)
Enquanto isso,
É nego andando às margens do Sena
Passeando sem compromisso
Com sua cachorrinha
Enquanto na Rocinha
Nego é mais um de outros cem
Alvos de caça dos novos
Líderes gentes de bem...

Deus eu acho que tirou férias
Permanentes:
Criou tudo
E desistiu,
Deixou rolar
Descrente
(Como vislumbrasse
Em seu infinito onisciente
A merda que daria...)
E foi passear
Nalgum universo paralelo
Por Ele criado...
(Que foi feito da pele
Da carne expiada
De quando homem encarnado?)
Dizem que já deixou
Tudo programado
E parece que dá as caras
Só muito de vez em quando
Pra conferir se a humanidade
Algum pouco evoluiu...
Salva uns 3 ou 4 de alguma tragédia
Ou ressuscita algum paciente,
Ri-se da Sua Comédia,
(Como nunca alguém riu)
E dá uma curiada
Nas preces mais urgentes
Para, ao fim, soltar:
" Até, macacada!"

(Dilberto L. Rosa, setembro de 2019)



Legendas das imagens: Capas de Discos de Rock (de cima para baixo):
Puzzle, Biffy Clyro, 2007
The Wall, Pink Floyd, 1979
Wis You Were Here, Pink Floyd, 1975
Houses of The Holy, Led Zeppelin, 1973
Frances The Mute, The Mars Volta, 2005
Bury The Hatchet, The Cranberries, 1999
Audioslave, Audioslave, 2002
The Endless River, Pink Floyd, 2014

domingo, 1 de setembro de 2019

90 Anos de Um Adorável
Marinheiro Fora de Seu Tempo...

S for Superman? No: for Spinach... O cômico Super-Homem do mar, criado por Elzie Segar,
 estreou nos Quadrinhos em 1929, como coadjuvante turrão das tiras Thimble Theatre
cujos protagonistas, dentre outros, eram os membros da Família da Olívia Palito.

O título original em Inglês do filme norte-americano Onde os fracos não tem vez (Ethan Cohen, 2014) é, na verdade, Este País não é para velhos (ou Sem lugar para os velhos, numa tradução mais livre), em referência direta ao velho xerife Bell, vivido por Tommy Lee Jones, e representa claramente o quão anacrônico sente-se o protagonista, em suas memórias de que o bem e a ordem sempre costumavam vencer, diante do sadicamente monstruoso assassino Anton Chigurh, vivido magistralmente por Javier Bardém, que parece representar os "novos e incontroláveis tempos"...

Parecem bonequinhos de vinil já prontos para vender!
Senti isso, só que de uma forma inversa, em relação ao que acabei de ver, numa dessas fuçadas de final de semana na internet pelo PC (pelo celular, só a velocidade das notícias): a nova série de desenhos animados do Popeye nada tem a ver com aquele antigo sujeito anárquico, feio (além dos braços deformadamente musculosos, era caolho e tinha a boca torta), grosseirão, briguento e que falava errado do passado, mais parecendo um comercial para vender brinquedos para crianças menores de 5 anos! Com visual fofinho e direito a "espinafre orgânico" (!), sem cachimbo (substituído por um apito - fumar é mau exemplo!) nem a deliciosa "ultraviolência" dos antigos cartoons, tudo soa bobo e sem alma, até o desfecho corrido com a expulsão de um Brutus sem barba (barba agora também é mau exemplo?) numa traquitana voadora, ao pôr-do-sol... 

Esqueça os "macacos me mordam" e "pelas barbas do camarão", saudosamente dublados por Orlando Drummond ao longo de quase toda a carreira televisiva do personagem - até porque a nova animação se desenrola em breves curtas sem diálogos e, atualmente, o maior dublador brasileiro se encontra aposentado e prestes a completar 100 anos agora em outubro... Nem se anime mais com o moderníssimo primeiro "trisal" dos Quadrinhos (muitas vezes o Brutus era vítima da sedução de Olívia, coisa que Popeye tinha que aceitar pacientemente...), ou ainda com as divertidas discussões acerca de eventuais "metáforas" contidas nas "laricas" do Dudu ou do próprio "verdinho enlatado" que deixava o protagonista alucinadamente forte (canábis?!)... Mesmo o nome do herói, pop eye, "olho estourado", pelo fato de ser ele caolho, já vinha sendo "remediado" ao longo de outras séries, em que se passou a ver somente um "olho fechado" (que, por muitas vezes, se abria)... A onda agora parece recondicionar tudo em pequenos videoclipes e 

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Que saudade do Robin Williams...
No entanto, eu me recuso a esquecer esse maravilhoso personagem, que viveu por tantos anos na minha infância: amo até hoje o Popeye feito para o Cinema nas animações dos Irmãos Fleischer, da década de 1930 (todos aqueles com a abertura na proa de um navio, abrindo-se uma escotilha para os créditos), que passavam já colorizados no Xou da Xuxa, bem como das últimas temporadas do Famous Studios, nos anos 1950 (sua melhor fase animada) - sem esquecer do preciosismo de fidelidade do filme live-action Popeye (Robert Altmann, 1981 - Disney), lindamente reproduzindo gags das primeiras tiras (em que a família da Olívia Palito era o destaque) e desenhos animados em meio a discretos números musicais, tudo com uma atuação soberba do saudoso Robin Williams - chegando a emular o andar e os famosos resmungos incompreensíveis do invocado marujo!

Até gosto um pouco, pelo saudosismo, de algumas outras tentativas de "corrigi-lo" e torná-lo politicamente correto desde os anos 60, na King Features Syndicate, com seus inúmeros personagens criados diretamente para a TV, como o chato Eugênio (o "Jeep" Mágico) e a Bruxa do Mar, e suas "desanimações" (animação bastante limitada com os orçamentos apertados) amplamente exibidas e repetidas no programa do Bozo... Mas minha paixão é pelas historinhas bem animadas do período clássico, em que ele oscilava entre um marrento cara brigão e o bom sujeito capaz de levar flores para Olívia e ensinar aos seus sobrinhos (outra criação televisiva que não existia nos Quadrinhos) as vantagens de se ter uma boa alimentação (e muita força!) comendo-se espinafre!

Tanto é que, mesmo antes de saber que o Popeye completa 90 anos nesse 2019 (comemorados em janeiro), escolhi o delicioso tema de abertura dos desenhos dos anos 60 para se tornar o meu despertador no celular no início desta semana, depois que o do meu relógio deixou de funcionar - e qual não foi a emoção ao acordar, às seis da manhã, com aquele famoso "pu-pu" do cachimbo, seguido da canção I'm Popeye The Sailorman (de Sammy Lerner, em 1933) - que usava, de forma intercalada, a tradicional música naval britânica The Sailor's Hornpipe (do século XVIII, que fez até a Rainha Elizabeth II dançar!)... Emoção que acabou tomando a casa toda naquele finzinho de madrugada que, pela primeira vez, entoou pela casa, mesmo para os meus filhos pequenos, que em nada conheciam o universo do divertido velho lobo do mar caolho... Assim, espero muito, de coração, duas coisas de agora em diante: muito em breve lhes mostrar o melhor do Popeye original; e não ficar a adorável canção de uma tão saudável nostalgia minha comprometida com a irritante rotina do despertar!

Tudo bem que ele soe mesmo ultrapassado por refletir tanto o seu tempo - comportamento extremamente machista em relação a Olívia (brigas por ciúmes possessivos; caçoava dela em algumas situações vexatórias); parecia só saber resolver seus problemas descendo o braço (e, estranhamente, parecia só atrair a Srta. Palito quando isso acontecia)... Mas ainda acho preocupante toda esta leva de "atualizações" de antigos personagens! Qualquer dia desses, além do Popeye, Pernalonga, Pica-Pau e toda uma geração de personagens "politicamente incorretos" se tornarão doces escoteiros fofinhos para agradar uma geração que se diverte com Baby Sharks no YouTube e zumbis nos videogames (santa contradição, Batman!)? Ou, de repente, atirar uma bigorna - ou, no caso, uma âncora - num desenho animado acabará sendo considerado crime - especialmente diante da possibilidade de alguma criança querer repetir em casa...
"Eu sou o que sou e isso é tudo o que sou"..!
 

+ voam pra cá

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