O certo é que ambos os protagonistas daqueles contos de duras ansiedades sobre o incerto da vida jamais deveriam ter nomes, nem muitas características pessoais detalhadas e expostas, muito menos se encontrarem - pelo menos não daquele jeito... Porém, em respeito à postagem feita - a obra foi escrita e lançada na rede no último dia 13 de maio; não penso me caber matá-la -, decidi mantê-la, mas com a chance de recriá-la numa espécie de director's cut, e contá-la de outra forma, com os matizes que considero mais certos e dignos em relação aos rumos que acredito serem peculiares a(os) conto(s) original(ais). Falo assim porque, se o incauto leitor de plantão preferir, o novo conto pode ser considerado uma "continuação" somente do primeiro, Amanhã é outro dia... -, mantendo-se o Será hoje à noite como uma história-homenagem paralela, uma prequel, o que poderiam ter sido as horas anteriores daquela "menina voadora sem asas"...
Desta forma, segue o conto final da(s) história(s) anterior(es) - da forma como acredito deveria ter sido escrito ab initio...
Morando sozinho naquele flat, ele
até podia ser artista, na alma ou nalguma modalidade em que não fracassara
antes, mas não tinha certeza de nada, especialmente depois de largar sua última
faculdade, como desejara o pai, tão rigoroso quanto bonachão. Detestando
computadores e os recentes celulares, conservava alguns pequenos prazeres
escapistas e anacrônicos, como escrever pensamentos fugidios na máquina de
escrever ou limpar suas miniaturas de chumbo com uma flanela macia – como se
todo o lugar já não fosse uma grande peça de decoração e, ele mesmo, um item de
colecionador do ocaso.
Normalmente, mantinha-se em forma, com
exercícios pela orla do bairro onde morava. Hoje, ele não sentia vontade: acordou
tarde e assim permaneceria, fitando o teto, até quase meio-dia. Não pegaria o carro para ir
tomar café ou almoçar. Não ouviria seus LPs de jazz no som
ambiente, espalhado pela casa em sistema embutido. Nem reuniria suas apostilas
para concurso em vãs tentativas isoladas de se concentrar para um independente
futuro que lhe fizesse orgulho pra alguém. Tampouco vasculharia com a
vista por algo lógico, dentro ou fora do apartamento, como sempre fazia ao
dormir e ao despertar.
Sentia-se pesado, como se a noite anterior
lhe dissesse algo – que tanto poderia ser uma pequena ressaca daquele vinho de
safra ruim como algo mal resolvido em sua consciência. Quase ao meio-dia,
levantou-se, finalmente, mas de maneira lenta e pesarosa: arrastou-se até o
banheiro, urinou e se pegou por uns minutos vendo-se no espelho, o que não
fazia havia semanas. Desligou o abajur francês, abriu um lado da cortina
com blackout, ligou o televisor importado de plasma e um plantão de
notícias de última hora gritou-lhe que uma jovem salvara-se milagrosamente
depois de cair de uma sacada de um prédio em seu bairro, durante uma festa, na
noite anterior.
"- Agora eu posso ver...",
sussurrou ele. Talvez buscasse o torpor libertário da jovem em vestido de
festa que vira na madrugada, antes de dormir. Talvez tentasse viver sem culpa.
Talvez quisesse fazer o mesmo. De concreto e sabido, simplesmente se levantou
de um salto, arrumou-se com o que catou e, em menos de 5 minutos, encontrava-se
pronto para sair, sem carteira, cartões ou chave do carro, no entanto.
Saindo, poderia ir ao seu encontro, conhecê-la,
e conhecer... Por que naquela festa? Entender o que lhe deu, se fora acidente, como escapara
– se, no último instante, ela quis mesmo escapar... Uma coincidência,
como árvores não podadas por algum motivo, havia lhe frustrado os planos (ou o
acaso salvador)... Saber dos seus sufocamentos, se com a mãe, se com algo
artístico reprimido por um afã mais “concreto” – ou ainda se ela lhe podia explicar
como ser feliz. E ali, somente os dois, poderia lhe falar de si, no
que deixara de crer, talvez ela lhe desse colo, talvez ela o acolhesse. Isso
tudo se, naquele momento, não preferisse ele mesmo se jogar daquela alta
sacada, tal como ela havia feito.
Ainda não era meio-dia, contudo o Centro fervia entre a vida e a morte acolá suspensas entre ruínas resignadas; na Ponta d'Areia, entre os clubões e as residências de bem, o sol já parecia querer se pôr... E assim era pelos tantos mundos do que sempre foi ilha nessa cidade sem sentido: um leve abalroamento fechava uma rua por quilômetros, um casal se deixava caricaturar no Reviver, uma festa se planejava, alguém chorava ao nascer e alguém precisava morrer. Porque o tempo perdeu de vez a razão de ser: e ele, como onisciente serpente lendária (que, se desperta, a tudo em volta é capaz de destruir), como que a tudo vendo em sua sacada, deixou sua varanda e saiu ansioso por encontrar aquela moça que sequer conhecia, ambas as ações inexplicáveis e repetidas vezes por horas a fio...
(Dilberto L. Rosa, 2019)
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