sábado, 25 de maio de 2019

Acredito que o conto de ontem possa ser refeito...

Como que ainda maravilhado por recentes reprises de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e Antes do Amanhecer, ou ainda por me encontrar naquele torpor fantasioso e quase operístico típico dos que vivem mais um aniversário, devo ter sido influenciado por um tom mais dramático e novelístico para ter escrito Acredito que ontem seja algo que se possa deixar para trás da forma como escrevi... E assim, o que era pra ser o encerramento de uma trilogia sobre o amargo e o doce dos encontros e desencontros da vida - iniciado por um conto pra mim tão marcante como Amanhã é outro dia e seguido, recentemente, por um ainda inspirado Será hoje à noite, mistura de "honrosa continuação" com conto independente -, acabou pesando somente no açúcar! E, apesar de linda e simbolicamente poético em seu pomposo título, achei que o conto apresentou-se pretensioso demais no tal encontro dos soturnos personagens, o que em nada me agradou no resultado final...

O certo é que ambos os protagonistas daqueles contos de duras ansiedades sobre o incerto da vida jamais deveriam ter nomes, nem muitas características pessoais detalhadas e expostas, muito menos se encontrarem - pelo menos não daquele jeito... Porém, em respeito à postagem feita - a obra foi escrita e lançada na rede no último dia 13 de maio; não penso me caber matá-la -, decidi mantê-la, mas com a chance de recriá-la numa espécie de director's cut, e contá-la de outra forma, com os matizes que considero mais certos e dignos em relação aos rumos que acredito serem peculiares a(os) conto(s) original(ais). Falo assim porque, se o incauto leitor de plantão preferir, o novo conto pode ser considerado uma "continuação" somente do primeiro, Amanhã é outro dia... -, mantendo-se o Será hoje à noite como uma história-homenagem paralela, uma prequel, o que poderiam ter sido as horas anteriores daquela "menina voadora sem asas"...

Desta forma, segue o conto final da(s) história(s) anterior(es) - da forma como acredito deveria ter sido escrito ab initio...

Ontem, Hoje, Amanhã

Morando sozinho naquele flat, ele até podia ser artista, na alma ou nalguma modalidade em que não fracassara antes, mas não tinha certeza de nada, especialmente depois de largar sua última faculdade, como desejara o pai, tão rigoroso quanto bonachão. Detestando computadores e os recentes celulares, conservava alguns pequenos prazeres escapistas e anacrônicos, como escrever pensamentos fugidios na máquina de escrever ou limpar suas miniaturas de chumbo com uma flanela macia – como se todo o lugar já não fosse uma grande peça de decoração e, ele mesmo, um item de colecionador do ocaso.

Normalmente, mantinha-se em forma, com exercícios pela orla do bairro onde morava. Hoje, ele não sentia vontade: acordou tarde e assim permaneceria, fitando o teto, até quase meio-dia. Não pegaria o carro para ir tomar café ou almoçar. Não ouviria seus LPs de jazz no som ambiente, espalhado pela casa em sistema embutido. Nem reuniria suas apostilas para concurso em vãs tentativas isoladas de se concentrar para um independente futuro que lhe fizesse orgulho pra alguém. Tampouco vasculharia com a vista por algo lógico, dentro ou fora do apartamento, como sempre fazia ao dormir e ao despertar.

Sentia-se pesado, como se a noite anterior lhe dissesse algo – que tanto poderia ser uma pequena ressaca daquele vinho de safra ruim como algo mal resolvido em sua consciência. Quase ao meio-dia, levantou-se, finalmente, mas de maneira lenta e pesarosa: arrastou-se até o banheiro, urinou e se pegou por uns minutos vendo-se no espelho, o que não fazia havia semanas. Desligou o abajur francês, abriu um lado da cortina com blackout, ligou o televisor importado de plasma e um plantão de notícias de última hora gritou-lhe que uma jovem salvara-se milagrosamente depois de cair de uma sacada de um prédio em seu bairro, durante uma festa, na noite anterior.

"- Agora eu posso ver...", sussurrou ele. Talvez buscasse o torpor libertário da jovem em vestido de festa que vira na madrugada, antes de dormir. Talvez tentasse viver sem culpa. Talvez quisesse fazer o mesmo. De concreto e sabido, simplesmente se levantou de um salto, arrumou-se com o que catou e, em menos de 5 minutos, encontrava-se pronto para sair, sem carteira, cartões ou chave do carro, no entanto.

Saindo, poderia ir ao seu encontro, conhecê-la, e conhecer... Por que naquela festa? Entender o que lhe deu, se fora acidente, como escapara – se, no último instante, ela quis mesmo escapar... Uma coincidência, como árvores não podadas por algum motivo, havia lhe frustrado os planos (ou o acaso salvador)... Saber dos seus sufocamentos, se com a mãe, se com algo artístico reprimido por um afã mais “concreto” – ou ainda se ela lhe podia explicar como ser feliz. E ali, somente os dois, poderia lhe falar de si, no que deixara de crer, talvez ela lhe desse colo, talvez ela o acolhesse. Isso tudo se, naquele momento, não preferisse ele mesmo se jogar daquela alta sacada, tal como ela havia feito.

Ainda não era meio-dia, contudo o Centro fervia entre a vida e a morte acolá suspensas entre ruínas resignadas; na Ponta d'Areia, entre os clubões e as residências de bem, o sol já parecia querer se pôr... E assim era pelos tantos mundos do que sempre foi ilha nessa cidade sem sentido: um leve abalroamento fechava uma rua por quilômetros, um casal se deixava caricaturar no Reviver, uma festa se planejava, alguém chorava ao nascer e alguém precisava morrer. Porque o tempo perdeu de vez a razão de ser: e ele, como onisciente serpente lendária (que, se desperta, a tudo em volta é capaz de destruir), como que a tudo vendo em sua sacada, deixou sua varanda e saiu ansioso por encontrar aquela moça que sequer conhecia, ambas as ações inexplicáveis e repetidas vezes por horas a fio...

Por fim, parou, respirou fundo diante de tudo que acompanhava a se movimentar ao longe ou em sua imaginação... E sorriu. Para poder recomeçar. Afinal, acreditava que ontem fosse algo que se pudesse deixar para trás...

(Dilberto L. Rosa, 2019)

 

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