segunda-feira, 13 de maio de 2019

Ontem, Hoje e Amanhã...

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Pontes entre o passado e o presente...
Em 25 de fevereiro de 1993, eu e meus 15 anos nos sentamos na antessala da Biblioteca Pública Benedito Leite e esperamos pela minha (primeira) namorada, envolvidos que estávamos havia mais de ano... Como ela demorasse e eu estava ali de gazeteiro, aproveitando ser aquela ainda a primeira semana de aula - eu, à paisana, mas de mochila, para usar de desculpa em casa -, peguei um caderno da bolsa, mais precisamente o de Português, e me pus a elaborar o primeiro parágrafo de algo descritivo que me vinha à mente em razão dos grandes lustres coloniais e da arquitetura portentosa, em estilo neoclássico, do local. Deu tempo de eu criar uma história e terminar aquele que seria o meu primeiro conto (ou seria crônica?!), intitulá-la de forma pomposa, Amanhã é outro dia..., e, só então, Andréa chegou. Mostrei-lhe, ela ficou "impressionada" (palavras dela). E, depois de passearmos pela Gonçalves Dias e nos beijarmos bastante (eu tinha 15 anos...), subimos a Rua do Passeio até a escola. Dor na consciência de menino aplicado, não costumava faltar aula e precisava ver se havia acontecido algo importante... Ou só queria desfilar minha bela namorada mais velha (tinha ela 20 anos à época e muito se parecia com a gracinha da Débora Bloch) pelos meus colegas "imaturos"? O fato é que fiz as duas coisas e aquele, sem dúvida, era um dia especial pra mim, pois eu já escrevia e namorava feito "gente grande" - o que me reservaria o futuro...?

Recentemente, em meio às comemorações do décimo quinto aniversário deste humilde espaço virtual no mês passado, joguei aqui sem maiores apresentações um conto inédito, Será hoje à noite..., que fazia conexão com Amanhã é outro dia... e seria uma espécie de continuação do meu original - em que, em minha então tenra idade, contei sobre o tédio desconcertante de um jovem abastado em seu apartamento, com um narrador meio em 1ª, meio em 3ª pessoa, a descrever suas pesarosas e deprimentes sensações diante de cada coisa sofisticada do seu apartamento até perceber uma jovem se jogando da sacada de um prédio a alguns metros do seu e seu vazio existencial não lhe permitir esboçar muita reação que não fechar a janela e ir dormir (esse final, claro, trazia algumas pinceladas poéticas...). Já no novo conto, cujo tempo cronológico era o mesmo 25 de fevereiro de 1993 de quando foi escrito o primeiro (numa espécie de retcon, agora voltando à tarde do mesmo dia), acompanhávamos uma moça aparentemente tão perdida quanto o protagonista anterior, só que com diferentes angústias e anseios diante de um Centro Histórico de São Luís carcomido e sem Poesia (pelo menos pra ela), com descrições que novamente alternavam o posicionamento do narrador a demonstrar os conflitos da personagem, para, somente ao final, suspeitarmos que se tratava da mesma jovem que se jogaria do prédio na noite do conto original.

Hoje, 13 de maio de 2019, é meu aniversário - e me pesam sobremaneira os 42 anos de fugas, tropeços e coisas inconclusas e sem vontade que carrego com afinco nas costas... Bom, tive 3 filhos maravilhosos e, como se pode ver, escrevi um bocadinho mais que somente aqueles meus primeiros poema (Morcegos, de 1991) e conto de meus 14 pra 15 anos (agora são 15 anos só de blog) - mas ainda com tanto a criar, contar, ganhar e construir na vida... Então, num ataque de saudosismo, pensei: e se, continuando um pouco mais Amanhã é outro dia..., prosa que, de forma muito afetuosa, sempre fez parte de mim em essência, além de saber quem foi "ele" e quem foi "ela", eu também contasse o "dia seguinte" àquele que permeou as duas histórias? "Maravilha, uma trilogia!" - assim pensa qualquer sujeito barrigudo que se encantou, quando criança, com os primeiros três filmes de Guerra nas Estrelas (depois, 4.º, 5.º e 6.º de Star Wars...) ou com os três volumes de O Senhor dos Anéis na tenra juventude. De qualquer maneira, o mais gostoso de revisitar esses personagens e suas angústias, além de me sentir como um M. Night Shyamalan e sua improvável, porém deliciosa, trilogia Corpo Fechado, Fragmentado e Vidro (concluída também muitos anos depois do primeiro), foi poder fazer a ponte de encontro do garoto de outrora com o homem de hoje, com todos os acúmulos bons e ruins de minha História e de minha escrita entre uma narrativa e outra (inclusive cinematográficos, com a influência de filmes queridos, esses contos escritos num tom de quase prontos para serem filmados) - e poder contar tudo de forma única, como uma história só, porém, tal como se dá com os meus 3 filhos, deleitar-me com as filigranas extremamente diferentes de cada um dos três contos independentes...
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Acredito que ontem seja algo que se possa deixar para trás...

Seu nome era Gustavo Alencar, tinha 33 anos. Atualmente, vivia unicamente da renda de seus pais em meio a inúmeros projetos fracassados e cursos abandonados, morando sozinho num flat de luxo. Podia ser artista, na alma ou nalguma modalidade em que não fracassara antes, mas não tinha certeza de nada, especialmente depois de largar sua última faculdade, Direito, desejo de orgulho do pai desembargador, homem tão rigoroso quanto bonachão. Gustavo detestava computadores e o surgimento do celular (podia ser encontrado mais facilmente e era cobrado por isso). Gostava de muito mais coisas antigamente, mas conservava alguns pequenos prazeres escapistas (e de antigamente), como escrever pensamentos fugidios a caneta em guardanapos ou na máquina de escrever. Também amava limpar suas miniaturas de chumbo com uma flanela macia e comer ovos cozidos no "ponto perfeito" - clara macia e gema firme a princípio, estourando no primeiro contato da colher -, logo cedo, após voltar do seu habitual cooper. Normalmente se mantinha em forma, com exercícios pela orla da Ponta d'Areia onde morava; hoje, não sentia vontade...

Naquele dia, ele acordou tarde. Mesmo assim, permaneceria na cama por um tempo, fitando o teto. Não pegaria a Mercedes para ir tomar café ou almoçar. Não ouviria seus discos de jazz no som ambiente, espalhado pela casa num sistema embutido. Não reuniria suas apostilas para concurso nas vãs tentativas isoladas de se concentrar para um independente futuro que lhe desse mais sentido. Nem vasculharia com a vista por algo lógico, dentro ou fora do apartamento, como sempre fazia ao dormir e ao despertar. Sentia-se pesado, como se a noite anterior ainda lhe quisesse dizer algo. Às dez e meia em ponto (embora sem ciência de tal horário), levantou-se finalmente, mas de maneira lenta e pesarosa. Arrastou-se até o banheiro, urinou e se pegou por uns minutos vendo-se no espelho, o que não fazia havia semanas. Desligou o abajur francês, abriu um lado da cortina com blackout, ligou o televisor importado de plasma e um plantão de notícias de última hora gritou-lhe que uma jovem de 23 anos salvara-se milagrosamente depois de cair de uma sacada de um prédio em seu bairro, durante uma festa, na noite anterior.

Embora detestasse som alto, não correu para achar o controle remoto. Manteve-se atento, sentindo seu coração e arregalando os olhos diante das imagens daquele canal, que não diziam o nome da jovem, nem se fora queda acidental ou se se jogara, muito menos a hora do ocorrido - talvez já o tivessem feito, no começo da matéria que lhe escapara com o televisor desligado. Só deu pra ver uma foto em 3x4 fixada no vídeo por dois segundos, e, por fim, imagens de árvores frondosas, de copa muito alta e espessa, que passando bem acima do muro entre dois condomínios quase vizinhos ao seu - "Sei onde fica, é na outra rua...". Por fim, ao fundo, a voz do âncora dizia que a jovem passava bem, tendo sofrido somente arranhões e escoriações, permanecendo no Hospital da região. "- Agora eu posso ver...", sussurrou ele,  talvez ainda sentindo o torpor libertário da jovem em vestido de festa dos seus últimos minutos de acordado da madrugada ("- Era ela..."). Levantou-se de pronto, arrumou-se com o que catou e, em menos de 5 minutos, saiu correndo de casa, sem carteira, cartões ou chave do carro.

No dia anterior, enquanto Clara Luna tirava fotos no Centro Histórico, a alguns quarteirões de casa, decidiu-se por não esperar a carona da sua mãe após deparar-se com sua vida, a morte esculpida nas belas lápides de um cemitério e um convite de antigos colegas de classe via SMS. E, por causa desse convite, pareceu desistir de perceber-se... Tampouco viu as muitas ligações de horas antes, quando sua mãe se desesperava no trânsito, o que justificaria o atraso: Dona Francisca Souza e Silva, sempre tão intransigente, tão soberba e tão perfeita em sua classe média classista, costumava apavorar-se ao volante e desde às 15 horas se encontrava a aguardar a perícia criminal da PM na Avenida dos Holandeses: batera seu Ford Fiesta recém-saído de fábrica na mais do que recauchutada motocicleta de Gilson dos Anjos, jardineiro de caráter ilibado, que jamais faltara a um serviço, porém desleixado para com seu único veículo, no qual não realizava qualquer revisão havia anos. Sendo assim, os galhos daquelas árvores que até briga judicial entre os dois condomínios já gerara permaneceria a esperar sua "menina-voadora sem asas" no final daquela noite... E, enquanto toda a cena se desenrolava e todo motorista que passasse gerava ainda mais tráfego para ver cada detalhe do acidente, Carla Moraes passando em sentido contrário, viu a "Tia Francisquinha" agoniada e sozinha ao celular, no meio da confusão da avenida, e se lembrou da antiga colega Clara dos tempos de menina e de escola, de quem havia tantos anos praticamente nem se lembrava mais...

Agora, de volta ao poder sobre seu protetorado, diante do leito no hospital, a mãe vociferava críticas às fraquezas da filha, pouco importando os incômodos físicos ou a alma partida da jovem, que então acordava com as asperezas maternas. A aludida vergonha da mãe diante dos parentes e amigos e o que seria da filha e de seu futuro eram a voz alta e nervosa da soberana e o silêncio envergonhado da menina - que quase nada se lembrava da noite anterior a não ser ter aceito o convite de última hora, a vontade frustrada por não rever uma pessoa, o desejo de morrer com o passado em sua cara e a completa embriaguez posterior. Lembrava-se dos galhos, da sirena da ambulância e agora completava o que lhe faltava com as intermináveis reconstituições narrativas da mãe, sozinha com ela naquele quarto frio de manhã nublada. Não sabia se tivera coragem ou se caíra de bêbada, mas uma coisa era certa: apesar do desnorteamento, agravado com o materno tom imoderado, algo de si morrera naquela madrugada e aquela manhã era outro dia - só restava saber enterrar os despojos da vida anterior que ainda a sufocavam...

De repente, mal surgia uma constrangida enfermeira entreabrindo a porta do quarto, quando ele irrompeu logo atrás - era Gustavo, parado em frente à Clara, porta escancarada. Todavia, ali não existiam nomes próprios, somente ele e ela, especialmente depois de a enfermeira sair de enquadramento. Ainda restava uma última personagem: a "mãe rendida", sem saber nada daquele jovem nem do que se passava, ora vendo-se completamente desnecessária e sem poder, acabou por também entender-se como mera figurante e simplesmente deixou o quarto em silêncio... Somente os dois, encarando-se, ele disse: "- Deixei de acreditar faz tanto tempo... E ontem, de alguma forma, quase não me enxerguei ao ver você se despedir... Mas algo em mim passou a acreditar depois de te ver hoje na televisão... Enfim, acredito que ontem seja algo que se possa deixar para trás...". Ela assentiu com a cabeça e lhe respondeu: "Você pode entrar...". O olhar mudo, cúmplice e resoluto de ambos foi seguido pela mão direita dele, que, devagar e inadvertidamente, aos poucos foi fechando a porta do quarto por trás de si... Tudo como se o passado começasse a sumir na mesma medida em que a tela escurecia na circunferência atemporal de um antigo fade out de fim de filme mudo...

Ainda não era meio-dia, contudo o Centro fervia entre a vida e a morte acolá suspensas, ônibus abarrotados de passantes e moradores isolados pelos azulejos do frívolo comércio que ainda fazia pulsar algo de quente em meio ao Simbolismo poético de ruínas que assim se resignavam. E, na Ponta d'Areia, do outro lado da ponte, do encontro do Anil e do Bacanga com o mar da baía de São Marcos, o sol já parecia querer se pôr e se aninhar com a paz das águas ao anoitecer... Entre aqueles dois mundos, um abalroamento fechava uma rua, alguém sentia pela primeira vez um orgasmo, um casal se deixava caricaturar, uma festa se planejava, alguém chorava ao nascer e alguém precisava morrer: nada mais importava e cada lugar daquele dia, magicamente, mostrava-se desértico e sem viva-alma... Porque o tempo perdeu de vez a razão de ser: e enquanto eles permaneciam ali, fechados em si no que se resolviam ou se reinventavam sem mais nada se saber deles, tanta coisa que antes corria em volta, a circundar como serpente que espreita por baixo da superfície e sempre terá história pra contar, parou e respirou fundo... Para poder recomeçar.

(Dilberto L. Rosa, 2019)
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