segunda-feira, 22 de abril de 2019

Será hoje à noite...
(Literatura - Conto - Fotografia)





Todas as fotos desta postagem: Dilberto L. Rosa

Um sem-número de casas térreas, de porão e mirante, solares, sobrados, palacetes, meias-moradas, moradas inteiras, moradas-e-meia - alguns à beira de um colapso iminente, enquanto outros se exibiam como salões comerciais abertos estrategicamente iluminados em suas imensidões internas de escuridão: todas aquelas casas e casarões dos mais variados simplesmente passavam por ela, tinham seu valor, mas daí a todo aquele endeusamento romântico ("Ai, casal sendo desenhado com fundo de museu? Por favor!")... Todos aqueles irritantes turistas... Toda uma cadeira na faculdade pra estudar aquilo? Por um momento, sentiu-se perdida e foi realmente angustiante a sensação de ser tragada pelo passado de ruas, vielas e becos praticamente iguais, como se ela própria fosse alguém de tempos idos, uma ruína esquecida por entre azulejos mal remendados, sem futuro algum que lhe servisse...


Seminário de História da Arquitetura, para dali a dois dias - e logo trabalho de equipe, que ela detestava: sozinha, garantia-se, não precisava fazer o social, ainda mais naquele estado em que se encontrava ("Não tinha seis meses..."). Mas até ficou contente com a parte que lhe coube: bastariam umas fotos pelo Centro Histórico, levar os negativos pra imprimir e catalogar no básico, de acordo com aquele livro emprestado da biblioteca. Não queria escrever nada... Senão acabaria cronicizando toda aquela caminhada de tarde inteira de saltinho já quebrado pelas fendas dos paralelepípedos soltos das infelizes ladeiras que a esgotavam fisicamente. E não eram nem cinco horas e os restos de comércios e serviços burocráticos remanescentes já se viam trocados por casaizinhos à procura do melhor lugar para curtir o pôr do sol ("Curtir o quê, meu Deus? Sol se põe todo santo dia!")...

Coisas velhas, construções ali jazendo sem sentido, tijolos e pedras de quantas eras antes dela. Arquitetura agora lhe parecia uma grande bobagem... Era isso ou Direito, sua igualmente velha e carcomida mãe lhe repetia, sabendo de suas tantas dependências e faltas de ímpeto. Acabou por passar nos dois, faculdades públicas. Para seguir pensando em quem não era, talvez nunca seria... De repente, ela era uma edificação abandonada pela família, pela História, pela vida... Morta de sede, resolveu entrar numa daquelas casas-sem-identidade, que, assim como ela, um dia pôde ter sido alguma coisa, porém hoje não passava de fachada: tomou uma cara água de coco pra turista, comeu um bombom de bacuri e tirou mais fotos - algo naquelas paredes estava mais morto que ela... Saiu, caminhou, outras fotos de vidas perdidas ("Como a dele em mim... A que eu perdi...") e gradis enferrujados.

De repente, o "tijolinho" em sua bolsa vibrava: era aquele bendito celular, coisa insuportável de invasão de privacidade que sua mãe insistia que carregasse - pra ser encontrada, controlada, socializada... A curiosidade foi maior e ela abriu o flip, confirmando o "torpedo" que acabara de chegar: na mensagem de texto, enviada por uma antiga conhecida do colégio, logo abaixo de uma piadinha de duplo sentido, um convite para aquela noite: "Grande Reencontro do Terceirão, nesta segunda, 25 de fevereiro de 1993 - 10 anos depois! Favor confirmar presença! Carla". Tão atordoada, ideia de rever pessoas que não queria, inquisições que lhe acordariam os fantasmas mais incomodados... Foi quando se deu conta de que atravessara toda a Rua São Pantaleão e se encontrava em frente ao Cemitério do Gavião ("Não foi aqui que meus avós foram enterrados? Quem sabe eu os encontre..."). Não teve medo. Sentiu paz...

Tirou algumas fotos de lápides que achou belas, como que a se despedir do passado e a abraçar o presente ("Será que ele vai...?"). Ainda mais no quase futurismo do endereço do grande encontro, cobertura de um prédio de luxo, parte nobre da "Cidade Nova", atravessando a ponte... E se pegou paralisada diante de um suntuoso mausoléu, em que uma jovem falecera, com sua idade, exatos 100 anos antes... "Será hoje à noite...", disse em voz alta, pouco antes de sair decidida, quase que sem sentir o chão, dos umbrais daquele soturno ponto final de sua jornada - decidiu voltar a pé. Não queria esperar pela carona da mãe. Não queria mais ver ninguém até à noite. Tinha que se preparar...
 

+ voam pra cá

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