sábado, 11 de outubro de 2014

Parte tranquilo, ó Carvana
Descansa na paz de Deus...



E a semana que ora se finda já começou triste... Pelo menos para quem preza o Cinema Nacional e sua identidade: morreu Hugo Carvana no último sábado, um dia antes das eleições nas quais o militante ator global de novelas e seriados votaria na Presidenta Dilma... Pois é, engana-se quem pensa que se tratava ele de um mero produto das famigeradas novelas da Vênus Platinada (salvando-se pouca coisa realmente, como o inesquecível Valdomiro Pena de Plantão de Polícia): Carvana, na verdade, sempre foi um homem de Esquerda, de Teatro e, acima de tudo, de Cinema – e que Cinema! Esteve envolvido com o Cinema Novo em seu nascedouro (marcantes as suas participações em Os Fuzis e Terra em Transe) e, baseado num personagem que criou para o filme Quando o carnaval chegar..., de Cacá Diegues (com Chico Buarque, Nara leão e Maria Bethânia no elenco), acabou entrando para a História da Sétima Arte brasileira com dois grandes e adoráveis filmes praticamente com o mesmo tipo: Vai Trabalhar Vagabundo e Se Segura, Malandro, ambos da década de 70, brincavam com a essência do malandro carioca/brasileiro – pequeno golpista ou locutor/proprietário de uma rádio pirata, aquele que, longe de ser um criminoso, era um sobrevivente e um debochado amante da liberdade contra o sistema repressivo do "certo" e do "progresso"... E, assim, o ator e diretor carioca repaginou a comédia de costumes e a chanchada dos anos 50, famosas pelo humor mais ingênuo, ao acrescentar várias críticas sociais e políticas camufladas pelo famoso estilo galhofeiro e popular.
Mesmo com muitas falhas, Vai Trabalhar Vagabundo (1973) e Se Segura, Malandro (1978) são primorosos com suas soltas cenas externas do Rio,  suas metalinguagens cheias de diálogo com o expectador e suas trilhas sonoras inesquecíveis (Chico Buarque compôs duas genialidades para o primeiro, Vai Trabalhar, Vagabundo e Flor da Idade, e teve o clássico Feijoada Completa utilizado no segundo) e surpreendem, porque são seus dois primeiros filmes. E foi com esses filmes que terminei de me apaixonar pelo Cinema brasileiro durante a minha adolescência (meu namoro inicial já havia começado com as "faces sérias" de Nelson Pereira e sua obra-prima Vidas Secas e de Roberto Farias e seu icônico Pra Frente, Brasil). E com esses dois bem sucedidos arroubos de direção no currículo que ele viria a dirigir sua terceira pérola cinematográfica, Bar Esperança - O Último Que Fecha (clique e assista ao filme completo): neste belo trabalho mais maduro, Carvana deixa de lado o vagabundo malandro que o consagrou, substituindo-o, junto aos seus personagens correlatos, pela nata da boêmia artística em torno de um bar que está prestes a ser demolido para a construção de um edifício. Apesar das mudanças, são facilmente perceptíveis vários laços com seus trabalhos anteriores (a Arte contra o progresso; a Esquerda contra a repressão, elenco gigantesco e primoroso formado por amigos do cineasta etc.), fazendo com que Bar Esperança seja considerada uma espécie de "terceira parte da trilogia malandra" do artista.
Infelizmente, Hugo Carvana nunca mais conseguiria entregar um grande filme como aqueles três: ele até tentou retomar os seus primeiros sucessos como diretor, naquele genial humor popular/transgressor dos seus trabalhos iniciais (vencedor que foi, por exemplo, dos Kikitos, em 73 e 83, de filme e roteiro), com Vai Trabalhar Vagabundo 2 - A Volta (1991), mas tal tentativa restou fracassada - mesmo com Marieta Severo, Nelson Xavier e grande elenco (pra variar...), a sequência era fraquíssima, e ficou bem longe de honrar o original... De qualquer forma, o Cinema festivo de Carvana continuou a gerar filmes muito divertidos, como O Homem Nu, Apolônio Brasil e A Casa da Mãe Joana. O que me incomoda, entretanto, é que aquela essência malandra parece ter-se perdido com a morte daquele Cinema nosso, de antes da Era Collor, e do próprio malandro em si... Ou, como perfeitamente vaticinou o amigo Chico Buarque, já na década de 70, que "aquela tal malandragem não existe mais"! Ah, e falando em Chico, uma das poucas coisas bacanas da insossa sequência do clássico primeiro filme de Carvana foi aquele "enterro" do personagem Dino: em mais um golpe do saudoso personagem, o compositor faz uma participação pra lá de especial, "caracterizado" como Julinho da Adelaide (pseudônimo que o cantor/compositor realmente usou nalgumas composições, como Acorda, Amor, visando burlar os censores setentistas da Ditadura), surgindo dentre os amigos do "finado" e cantando o clássico tema de mais de 40 anos atrás: "Parte tranquilo, ó irmão,/ Descansa na paz de Deus"... E assim creio que se foi o companheiro Carvana, como o Dino de Vai Trabalhar Vagabundo 2, que acompanhava, muito vivo, seu próprio enterro, rindo-se da vida que deixou pra trás, porque "sorrindo se chega mais fácil ao meio do inferno"... "Vamos acordar, minha gente!": com suas metáforas políticas, Hugo Carvana, assim como eu, sempre defendeu uma arte libertária e que luta pelo social  e "eu não sou doido... Ou sou?"...


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2 comentários:

Camille on 13 de outubro de 2014 às 13:10 disse...

Tambem fiquei triste com a morte de Hugo Carvana. Alem de ator dos bons, era uma pessoa bacana. Ha anos atras teve um tumor no pulmão, ou varios, abraçou o Espiritismo, fez cirurgias num centro e divulgou, dando alento a gente com muito problema parecido, que foi se curar la.Essa fé em algo maior , inexplicavel mas que cura, é muito importante. Talvez ele não tenha curado de todo, mas com certeza, pelo tempo que foi( mais de 10 anos) ele teve uma boa anistia dos de la de cima, e aproveitou ainda um tanto da vida. QUe pelo que parecia, sabia aproveitar. Um abraço Batman.
Cam

Anônimo disse...

Fiquei pirado nesse texto... Que coisa louca, eu não sabia dessa faceta de Carvana. Um cara de múltiplos talentos então, deixou um legado incrível fora as atuações em telenovelas. Meu caro, esse é um espaço que me deixa, sem dúvida, um pouco mais inteligente, ou menos burro. rsrsrsrs.

Sempre uma grata surpresa, não sei porque esse blog não está vinculado a nenhuma outra grande mídia de entretenimento e cultura, deveria.

Grande abraço e obrigado!

Cristiano

 

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