Mesmo ainda sem saber de onde eu vinha ou em qual momento eu estava (ou de que época eu era), a escuridão em branco surdo que a tudo tomava começou a se dissipar e me mostrar um caminho - assim como um som, ao fundo, que se evidenciava como sendo
Claire de Lune, de Debussy. E o caminho, revelando-se aos poucos como numa fotografia esmaecida, jeito onírico, como que passando de um fim de madrugada para uma manhã, era a curva que fazia aquele trecho do passeio público que mais gostávamos de percorrer juntos quando ela e eu nos púnhamos a caminhar, por baixo de uma alameda que a tudo sombreava com suas folhas coloridas, por entre pequenos montes de terra e vegetação crescida a esmo, e que passava bem em frente à antiga casa da minha finada "tia rica" (assim a chamávamos, sovina que só ela), de quando morava ali, em frente à lagoa quando nem havia ainda o Parque da Lagoa. Agora eu tinha um chão pra pisar para além daquela escuridão branca sem começo nem fim - e uma direção... E passava então por ali, naqueles mesmos montinhos de terra que à minha infância pareciam grandes morros, onde minha Tia Rica enterrava seus cachorros falecidos - ao menos foi assim que me contaram, um dia, meus "primos ricos", filhos dela, o que me deixou sem dormir naquela noite porque ou eu vira ou eu pensava que vira, condicionado pelas conversas de se enterrarem ali "cadáveres caninos", uma carcaça de mandíbula de um cachorro pequeno (poderia ser um dos pequineses que criavam) e, assim, passei a noite toda gritando por minha mãe imaginando um lobisomem vindo do escuro para me assombrar...
Gostava de contar essa história a ela, sempre que passávamos por aqui... Agora me parece que estou sozinho, sem mais mundo sequer... O mais curioso era o quanto esse lugar me trazia tanto dela, numa sensação boa de vida a toda vez que por esse trecho passava com ela, ou quando por aqui acabei passando sozinho: era como se fôssemos nós dois, a vagar pelo tempo neste corredor de árvores tão velhas e de ela ir comigo para onde jamais esteve, nos meus tempos de criança... Ou será que ela esteve? De repente, vejo crianças brincando na ladeira do morrinho e, ei: são meus primos mais velhos (os "primos ricos" eram 4: os dois mais jovens regulavam minha idade), eu com uns 8 anos e... ela?! Como ela podia estar aqui?!
- Venha, meu cavaleiro! Venha me salvar desse monstro! - no que aparecia o pequinês mais rabugento da Tia, nunca suportei aquele cão, desde que me arranhara a perna certa feita!
- Estou aqui por você, princesa Leia! - sim, vivíamos o fervilhar do lançamento de
Guerra nas Estrelas... No que eu, apesar do medo inquieto do cachorro, batia o pé no chão, expulsando o chato de perto do "castelo", que saiu rosnando e derrubando algumas caixas de papelão perfiladas que a separavam de mim, como muralhas onde estaria presa, e eu, mesmo criança, sabia que sempre poderia ajudá-la.
Ao fundo da cena, meio sem graça com o abraço efusivo que nos demos ao final do "salvamento" de brincadeira (como era bom o cheiro dela) na nossa pequena ilha desenhada de giz no chão, meus primos, ricos e chatos toda vida, passam a provocar cantarolando alguns versos de Raul:
- Viva, viva, viva a sociedade alternativa..., a caçoar daquelas pequenas loucuras infantis. E assim, ao som das gargalhadas daqueles dois moleques inconsequentes e da pura visão do que já nem sei se vivi ao lado dela ou não, eu vou me sentindo impelido a seguir pelo caminho, dando as costas para aquele quadro que, muito ao contrário do que desejavam me humilhar as picardias de meus parentes adolescentes, acabou por me fazer viver, viver, viver - como há muito não fazia...
CAPÍTULO XV
Love of my life
Aí ela disse: - Deixa assim, amanhã a gente resolve'. E eu logo respondi: - Até amanhã...
Sentei no sofá, só me restando o copo de vinho e a solidão, aquela que mais doía: a solidão a dois.
Olhei o celular e ela continuava online. Fiquei olhando e não apareceu a palavra 'digitando'. E eu não ia dar o braço a torcer; afinal, a culpa nunca é minha!
Vinte minutos depois, ela não estava mais lá. Uma voz lá no fundo me trouxe uma sensação estranha, era como se ela dissesse: - E aí, está satisfeito? Curtindo saber que ela está mal? E eu respondia: tentei conversar, ela não quis. No que a voz retrucava: tentou o bastante? Fez o suficiente? Quantas vezes você estava assim e ela tentou conversar? E os esforços para sempre acertar? E as coisas que ela fez por você? Será que ela não merece nada mais que o seu estouro?
Percebi então que tudo aquilo era só eu conversando mais comigo mesmo do que com a pessoa que eu tanto gostava - e que, provavelmente, nem estava conseguindo dormir justamente porque não tentei de verdade resolver a situação!
Peguei o celular e liguei: - Me perdoa, amor, você não merece dormir mal por essa situação... Se quiser resolver amanhã, a gente resolve, mas hoje, é tudo o que eu tenho! Quero muito que saiba o quanto gosto de você e a admiro... E acabo descontando em você por ser a única em que eu confio.
A voz dela mudou e eu senti que aquela situação teria sido desfeita se eu fosse outra pessoa - ela era tão simples..
Terminei de ler aquela folha impressa por ela às pressas, antes de sair do trabalho hoje - vi pela impressão que saiu mais tarde do que seu horário para poder produzir aquela narrativa que não só parecia debochar com raiva dos meus personagens e estilo, como também esfregava na minha cara o quanto meu protagonista e tudo em sua volta deveriam mudar na narrativa a fim de serem mais verdadeiros, de acordo com ela... Simplesmente lhe enviara mais alguns capítulos, mesmo em meio a essa nossa crise, para que desse uma olhada como sempre fazia - só que jamais imaginei que, ao contrário de como costumava fazer, chegar me dando boas críticas construtivas ou mesmo dizendo que se emocionara com tais e tais partes, hoje ela simplesmente chegou com essa folha meio amassada e até um pouco molhada talvez respingada por lágrimas, dizendo pra mim assim na lata: -
Já me calei demais aqui, quero ter vez e voz agora! Eis aqui um capítulo que o grande escritor deveria colocar nesse romance!. E terminei chorando, sem conseguir dizer qualquer coisa... E, ao cabo de alguns instantes de silêncio entre nós dois, improvisei:
- Não me faz chorar mais...
No que ela irrompeu, logo se defendendo que eu jamais a enxergara nem o quanto ela chorara, somente a pintando como uma bruxa tanto no meu início de romance como na nossa vida como um todo, quando logo continuei, mostrando-lhe que aquele não era o início de uma conversa em que mais uma vez não conseguiríamos nos entender, mas, sim, o título de um pretenso poema...
Repeti o título: -
Não me faz chorar mais... E prossegui:
Este poema que te choro agora,
Aqui mesmo na nossa sala
Onde tanto cansamos de gastar as solas
Dos nosso leves pés de danças e de sonhos
Como se aqui fosse um imenso salão
Que criamos maior e diferente
Para cada canção tocada e vivida,
É uma coisa bem simples,
Arremedo de poema até...
Mas essa coisa tola que te canto agora
É para guardar, lembrar e ser vivida
Como uma das nossas músicas
Mais sentidas, amadas e curtidas
Como só tu tens aquele jeito lindo
De viver cada canção...
É para lembrar que o amor
Ainda é o maior motor de todas
As melhores canções já feitas
E por nós tão vivenciadas
Em cada passo da caminhada
De nós dois.
E o amor que te grito agora
Nesse poema que te pede paz
Nos canta a nos eternizar
E nos fazer crescer e viver
Ainda e sempre mais...
Então por favor, eu te rogo,
Agora e em cada canção que nos seguir:
- Não precisa de nada disso...
Não me faz chorar mais...
Mal eu disse o último verso e ela, aos prantos e como que sabendo exatamente onde o poema acabaria, subiu em mim com a chama antes aparentemente apagada com o fechamento e a falta de diálogo, agora novamente acesa com todo o ardor da canção que começou a tocar na vitrola: nem nos déramos conta de que o jantar que eu fizera esfriava na mesa nem que meu clássico
compact disc do
Queen já tocara o lado B quando, enfim, foi mudado automaticamente de lado e passamos a ouvir
Love of my life - e, tal como se traduzíssemos não-intencionalmente cada verso, nós começamos a tirar as roupas nos pedindo e prometendo quase que cada passagem do que entregava tão apaixonadamente Freddie Mercury ao piano enquanto fazíamos amor ao longo de toda a madrugada, mesmo muito tempo depois de o
LP ter acabado e a agulha, antes tão ativa, ter finalmente parado e repousado...
Bring it back, bring it back, don't take that away from me because you don't know what it means to me...
CONTINUA...