Antes e depois da mania de perfeição...
Neste final de semana, por acaso,
em meu costumeiro zapping no controle
remoto pela televisão, acabei
apreciando, no Disney Channel, a
animação Star Wars – Rebels, piloto de uma nova série televisiva,
situada entre o Episódio III e o IV dos cinemas, que, apesar do já consagrado estilo
ruim de animação e de desenho similares a populares séries anteriores, como Guerras dos Clones, acerta bastante no
ritmo de diversão e honra personagens clássicos da trilogia original,
expandindo bem, e ainda mais, o já gigantesco universo de Guerra nas Estrelas... Enquanto isso, eu pensava com meus botões: Puxa como deve ser bom ser George Lucas:
mesmo “aposentado”, um universo de novos personagens, tramas e galáxias muito
distantes continua sendo desenvolvido em torno de sua antiga criação,
rendendo-lhe rios de dinheiro e sob o seu criterioso aval artístico...!
Bom, na verdade, nem tão
criterioso assim, convenhamos: cada coisa que já lançaram com a marca SW... Ainda me lembro, por exemplo, da
enorme euforia sentida nos anos 90 por toda aquela geração de nerds oitentistas, da qual, honrosamente, faço parte, ao ouvir o
anúncio de que haveria uma nova trilogia como sequência dos clássicos Guerra
nas Estrelas, O Império Contra-Ataca e O Retorno do Jedi – assim que eram chamados aqueles
filmes antes de toda essa patacoada burocrática e quilométrica atual de ter que
falar Guerra nas Estrelas (ou Star Wars, como exige a atual geração
bilíngue) - Episódio Tal - mais o
título do filme propriamente dito... Mas
qual não foi a nossa amarga surpresa quando, antes mesmo de serem produzidos os
novos (e ruins) “primeiros capítulos” (afinal, pra que fazer prequels, contando histórias de antes daquelas
que já tínhamos visto, se já era bom demais ter ficado só na imaginação sobre como
Anakin Skywalker se tornara Darth Vader?), Lucas aparecia com o estranho mau gosto
de reeditar, com inúmeros novos efeitos digitais, a trilogia original para
relançá-la nos cinemas quando do seu vigésimo aniversário, em 1997?!
Não restam dúvidas de que foi
mesmo maravilhosa a oportunidade de ver todos aqueles espetáculos da mais
famosa saga espacial das nossas infâncias na tela grande (até existia uma
criativa campanha promocional de trailers
nos cinemas, a demonstrar a enorme diferença de tamanho na forma como sempre havíamos
visto tudo, na TV), porém restava a dúvida em relação às novas cenas: por que
mexer em algo irretocável?! Necessidade de aceitação pelas novas gerações, que
exigem uma enorme profusão de CGI em
cada centímetro quadrado de tela? Tinha que haver uma espécie de “preparação”
para a hecatombe de cansativos cenários de efeitos digitais intermináveis que
viria, em seguida, com os três novos filmes insossos e sem graça? Ou seria mero
capricho de um autor eternamente insatisfeito com seu original resultado final,
numa época em que não existia tecnologia para tanto (e que acabou sendo criada
por ele mesmo, a partir de 1977, em poderosos computadores com avançados
programas, que gerariam, posteriormente, a ILM e a Pixar)? Acabou sendo esta
terceira alternativa a desculpa que o cineasta apresentou para o irritante
acréscimo de naves, criaturas e demais trucagens às antigas películas...
Tudo bem – nós nos contentávamos –, é só comprar depois os DVDs com as cópias sem essa edição chata... Mas
chato mesmo era o próprio George Lucas, que além de lançar sua horrorosa nova
trilogia dos Episódios I, II e III (‘tá, vá lá: o III até que é razoável...) logo em seguida àquele vilipêndio dos seus clássicos, ainda anunciava,
para a completa desolação de seus fãs, que, a partir de então, ninguém mais encontraria as cópias
originais de 77, 81 e 83 sem os efeitos digitais... Os três primeiros
filmes de Star Wars? Só as novíssimas
“Edições Especiais”! E tudo isso vindo do criador de uma verdadeira Religião pop, a “Força”... Definitivamente, George
mostrava que se rendera ao Lado Negro... Ou seria Lado Sombrio?!
“Lado Sombrio”... Difícil
acreditar, mas sabe aquele discurso bem fundamentalista do seu antigo
professor de História, que, por acaso, também fazia parte do mais radical
movimento negro da sua comunidade, de que expressões como “a coisa ‘tá preta”
tinham que ser urgentemente mudadas por causa do tom pejorativo à “raça”?! Pois
é: parece que alguém deu ouvidos a este politicamente correto extremista e
resolveu modificar um dos cânones da cultura pop dos anos 70/80 e alterou, nas novas dublagens e legendagens em
Português, tanto da trilogia original como da mais recente, o famoso Dark Side, que no Brasil imortalizou-se
como “Lado Negro”, para... “Lado
Sombrio”! Ah, ‘pera lá: sombrio pode ser até um lugar coberto por árvores! Sim,
eu sou totalmente a favor de que se dê um basta no racismo com políticas sérias
e leis mais severas, bem como se passe a maneirar bem mais no nível preconceituoso
de muitas piadas grosseiras e absolutamente sem graça com a etnia negra, mas,
daí a mexer com a arte de Lord Darth Vader somente para não soar racista? Qual seria
o próximo passo, então? Colorizar de branco a famosa indumentária negra do
maior vilão do Cinema? Acho que isso, por mais politicamente correto que George
Lucas tenha ficado com o passar dos anos (ou alguém aí já se esqueceu da
“Questão Greedo” e de quem teria sacado primeiro?), não teria a menor chance de
ser aprovado...
Coisa de brasileiro, que adora
gritar em plenos pulmões de que, neste País, "não há racismo"? Talvez... Nos EUA,
como a guerra é declarada de há muito, os lados acabaram ficando muito claros
(sem trocadilhos) com o tempo. E, para confirmar que tal tese é legitimamente
tupiniquim, eis que outro Mestre de uma geração, Mauricio de Souza, resolveu percorrer caminho similar com alguns
dos seus famosos personagens... E não é que o Pelezinho, famosa homenagem ao Rei do Futebol, com personagens
coadjuvantes geniais (sendo, a maioria, negra ou mulata: Bonga, Cana Brava, Jão
Balão, Teófilo etc.) e historinhas igualmente fantásticas, foi a última
“vítima” do “politicamente correto racial”?! Pois é, sabe aquele círculo rosado que
circundava as bocas dos personagens negros desde priscas eras e que compunham
os desenhos de muitos artistas nas décadas de 70 e 80, incluindo o pequeno
craque e sua turma? E não é que o empresário-desenhista Mauricio resolveu,
literalmente, depois de tanto tempo, apagar isso nas reedições de antigas
historinhas na série “As Melhores Histórias do Pelezinho”!
É inegável que antigas caracterizações
pejorativas de artistas brancos maquiados como negros, entre os séculos XIX e
XX (a conhecida blackface, grosseria preconceituosa e sem graça comum até
em filmes famosos como Nascimento
de Uma Nação, de 1914, e O Cantor de Jazz, de 28), eram pródigas
neste tipo de racismo, ao exagerar na anatomia mais grossa dos lábios,
pintando grandes círculos brancos ou vermelhos em volta das bocas dos atores
“cômicos” daquela época... E é certo também que muito deste traço do Mauricio,
bem como de outros artistas já no final do século XX, bebeu diretamente nesta
fonte, ainda que de forma inconsciente. Mas daí a mexer em historinhas antigas,
sem necessariamente tratar de apresentar um “novo Pelezinho” para as jovens
gerações, é tão tolo e artisticamente empobrecedor como a reedição de efeitos
especiais de George Lucas!
Tal busca pelo politicamente
correto, de não ofender, com qualquer aspecto negativo no desenho, todo um
grupo étnico (especialmente se considerarmos a sua prevalência num País negro-miscigenado como o nosso), a mim soa mais
agressivo do que se deixassem as grandes bocas onde estavam – atraindo
os holofotes para uma mudança tão gritante ao “ajeitar”, pelo computador,
inúmeras estorinhas relançadas hoje em dia, parece mais um desengonçado “pedido
de desculpas” ianque do que, realmente, uma preocupação com o devido respeito aos
negros e sua representação exagerada!
Isso sem falar da anulação quase
total da rica expressividade dos desenhos originais de Pelezinho: além do acréscimo de um nariz ao protagonista e ao Cana,
no lugar de todas aquelas ricas “boconas” restaram apenas traços retos ou mesmo tortos
e malfeitos como bocas! Como “esclarecimento oficial”, o estúdio anunciou que
“o traço foi reestudado para se tornar mais moderno, atualizado e universal” –
hã? Como assim?! Se era pra caprichar tanto na descaracterização de personagens
tão legais em nome de conceitos duvidosos, talvez fosse bem melhor deixar sem
“explicar” nada... Tudo bem, já haviam feito coisa parecida com o único
personagem negro da Turma da Mônica, o Jeremias,
que de “preto-carvão” e com círculo-rosa como boca nos anos 70, foi, aos
poucos, alterado até chegar à forma atual, marrom-claro e sem lábios (!), mas
só com as novas historinhas deste novo século ortodoxo: mexer com o que está feito e consagrado há tanto tempo é alto tão patético quanto
desrespeitoso, não só com os inúmeros fãs das antigas como também com todos os
profissionais envolvidos com aquele trabalho retocado – afinal, tanto o Cinema
quanto os Quadrinhos são artes coletivas!
Ah, sem esquecer, também, que outro
personagem do Mauricio sofreu horrores, literalmente, com seu traço “atualizado”
e “mais apropriado” aos novos tempos, em que tudo pode “assustar” as pobres
criancinhas: a Dona Morte, sempre
caracterizada como uma caveira andrógina (às vezes eram até usadas linguagens
no feminino, por causa do nome da personagem, mas jamais foi vista exatamente como
uma “mulher”), atualmente vem sendo desenhada com lábios, seios e formato dos
olhos feminino nas novas revistinhas do Penadinho! Meu Deus... Ainda bem que na
coleção “Pelezinho Coleção Histórica”
(reedição das revistinhas originais do personagem, seguindo a ordem de
numeração como foram lançadas, que venho colecionando) mantém os traços
“racistas”, diferentemente da série “As Melhores Histórias do Pelezinho” – que,
por essas e outras razões, acabei deixando de comprar...
Graças a Deus que o mundo gira e,
com o tempo e a consequente evolução inevitável, inúmeras coisas
grosseiramente ultrapassadas não se repetem para as novas gerações – e, assim,
“divertidos” personagens caricatos e ofensivos, como a empregada negra que fala
errado, e cujo rosto nunca aparecia, Mammy
Two Shoes dos filmes de Tom e
Jerry, os ratinhos mexicanos lerdos e preguiçosos amigos do Ligeirinho e inúmeras outras ofensivas blackfaces que pululavam nas telas de
animados desenhos como Looney Toones e
Mickey Mouse como uma gag recorrente são coisas do passado...
Mas nada de alterar eletronicamente tais desenhos ou simplesmente retirá-los de
circulação para parecer correto ou lançar um mea culpa às novas gerações: é dever de todo pai e mãe conscientes
orientar seus filhos ao ver qualquer forma agressiva e desrespeitosa em relação
a gênero, etnia ou origem sócio-regional, seja atual, seja nas fotos, nos
vídeos ou mesmo nos livros empoeirados do baú da vovó – ou alguém aí já se
esqueceu das formas agressivamente racistas com que Monteiro Lobato tratava a
Tia Anastácia e outros personagens negros nos seus livros do Sítio do Pica-Pau Amarelo?
Qualquer forma de arte evidencia
o tempo em que foi criada, não há como fugir disso e é desta forma que devem ser vistas e encaradas! Assim, qualquer período injusto
e equivocado de nossa História só será devidamente “corrigido” quando confrontado
– apagar digitalmente trechos de uma obra ou mesmo retirá-la de circulação não
só é ridículo e contraproducente como também se torna empurrar pra baixo do
tapete da humanidade realidades sérias e largamente atuais! Pior ainda é quando
tais “mexidinhas” se dão por mero capricho de um autor para ver como seria sua
obra antiga com novas imagens ou efeitos especiais atuais... Como diria Dadinho, em Cidade de Deus, "politicamente correto é o caralho"! Afinal, já pensou se o George Lucas
decidisse inserir um negro gerado por computador em seus filmes antigos
meramente para aplacar a ira dos ativistas, que sempre consideraram
preconceituosa a saga Guerra nas Estrelas por
mostrar somente um personagem negro em sua trama (Lando Calrissian, vivido por
Billy Dee Williams)? Ei, será que foi por isso, então, que ele fez toda a nova
trilogia: para mostrar um jedi negro
(Mace Windu, personificado por Samuel L. Jackson)? Mistério... Pensando bem, eu
que não quero mais ser esse chato do Lucas, ou qualquer outro artista indeciso
e insatisfeito: isso seria pior do que uma cirurgia plástica na papada, um
implante de cabelo ou ajustar qualquer verso de meus poemas! E viva o lado negro, de qualquer lado!
Antes e depois da mania de perseguição...