sábado, 18 de abril de 2020

Rubem Fonseca desde os 14...

Rubem Fonseca: veja repercussão da morte do escritor | Pop & Arte | G1
Além do meu divisor de águas na Poesia com Morcegos, tive outro divisor naquele mesmo ano de 1991, só que na Prosa: graças a um antigo livro de Redação da 8.ª série, passei a usar muito dos meandros narrativos que me acompanhariam o resto da vida de escritor depois de ter lido (e feito os devidos exercícios de interpretação de texto passados pelo professor Sidney depois da leitura) Passeio Noturno, de Rubem Fonseca. Aquela Literatura me impactou não só pelo final inesperado como pela linguagem irônica por trás de sutis análises dos personagens num texto curto e conciso - que depois ficaria sabendo tratar-se de um conto (ou seria crônica?) -, porém perfeito na incrível narrativa de crescente suspense hitchcockiano (aquele de construção em cima de precisos detalhes: adorava, por exemplo, ler e reler a retirada dos carros de toda a família da garagem pelo ansioso protagonista/antagonista) sobre um entediado "cidadão de bem", que, depois de um estafante dia no escritório e do vazio diante de uma família alienada e desunida, tudo o que mais queria para espantar qualquer mal da alma era uma boa voltinha com seu carrão turbinado pela cidade vazia à noite e mostrar a sua verdadeira face...

E, com o tempo, veria muitas outras facetas naquele que se tornaria um dos meus autores favoritos... Do lado mais efervescente e policialesco dos submundos, dos personagens duros e amorais e das narrativas mais em tom épico de muitos dos seus romances eu li somente o brilhante Agosto (mescla de ficção e fatos históricos sobre tramas policiais e políticas em torno dos bastidores da morte de Getúlio Vargas, na mesma época em que foi lançada a minissérie homônima na Globo), o bom A Grande Arte (que apresenta um dos seus mais famosos personagens, Mandrake, espécie de advogado e detetive, também em razão de sua adaptação, desta vez para o Cinema, com o sucesso do filme homônimo de Walter Sales em vídeo) e o excepcional O Selvagem da Ópera (espécie de "cinebiografia literária" sobre a vida do compositor Carlos Gomes). Mas foi mesmo na prosa do Mestre Fonseca que me debrucei e afinei muito das minhas letras, devendo a ele - bem como a gentes do calibre de Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Luiz Fernando Veríssimo e Rubem Braga- muito da minha narrativa contista e cronista que jamais me abandona até hoje (a propósito: não deixe, caríssimo e fiel blogueiro de plantão, de ler minha postagem especial de aniversário de 9 anos sobre esses dois meus diletos influenciadores: Os Rubens e Os Morcegos)

Porém, infelizmente, foi o "Zé Rubem" que nos abandonou essa semana... Viveu bem, 93 anos e muita força visceral na vida e nos seus papéis... Mas dá aquela sensação de perda no mundo cá das letras, que vai calando e cada vez mais caçando com uma lanterna um novo prodígio dessa envergadura literária e de emoções - especialmente um com todos aqueles arroubos entre a violência presente em cada esquina urbana, nas lutas entre ricos e pobres, e as paixões mais latentes e carnais... Rubem Fonseca resta presente em muito da minha obra - especialmente na minha crônica (ou seria conto?) mais voltada para sua influência/homenagem, escrita dois anos depois daquela descoberta rubenfonsequiana de escola: Amanhã é outro dia, com a amoralidade fria de um rico protagonista sem nome diante da vida e da morte numa quente noite dentro de um apartamento sofisticado olhando o mundo de dentro de sua seca redoma - tal como muitas características do sádico sujeito ao volante do extraordinário texto que tanto me marcou, encabeça este post e aprece em sua integridade logo abaixo. 

Curiosamente, tempos depois, pude ler Feliz Ano Novo, um dos seus mais célebres livros de contos - e em que originariamente fora publicado Passeio Noturno, em 1975 -, e descobri que aquele conto (crônica?!) era, na verdade, uma "Parte I", informação suprida no tal livro de Redação de minhas reminiscências... E, apesar da alegria ao descobrir que a Parte II constava do mesmo livro, qual não foi a minha decepção com a "continuação" daquela trama que tanto me marcara no início da adolescência... Tanto quanto me decepcionou nem tanto a segunda parte (de que gosto muito, a propósito), mas a terceira e última parte que eu mesmo escrevi para meu mais querido conto-crônica (na dúvida, vão os dois gêneros irmãos!): na verdade, não fiquei muito satisfeito com nenhuma das duas versões feitas para o encerramento de Amanhã é outro dia - e me pergunto, até hoje, se deveria ter havido um "desfecho" de encontro desses dois personagens infelizes que eu criara nas duas partes anteriores (assim como, de certa forma, de vez em quando elucubro se o velho e já saudoso Rubem se questionava sobre a desnecessidade da sua boa, porém fraca se comparada com a original "Parte II" de Passeio Noturno)... Por isso, na dúvida, fiquemos com o Passeio original... Boa viagem, Rubem...

Clube da Leitura » Post Topic » “Passeio noturno”, por Rubem Fonseca
Passeio Noturno (Parte I) 

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa-de-cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando empostação de voz, a música quadrafônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala? Perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescidos, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.

Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu carro. Tirei o carro dos dois, botei na rua, tirei o meu e botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico, Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na Avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher?, realmente não fazia grande diferênça, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mail fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som das borrachas dos pneus batendo no meio-fio. Pequei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em onze segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de vermelho, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.


Rubem Fonseca
Feliz Ano Novo, 1975
 

+ voam pra cá

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