quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Elogio da Loucura...

Palmas...
Classificação dos Morcegos:
(Ótimo)
CORINGA:
Releitura de Releituras de um Ícone



Primeira origem para um monstro de loucura:
Alan Moore, em 1988, imaginou o Coringa um fruto
de fracassos (como comediante e pequeno criminoso)
e acidentes quase fatais (mergulho no ácido)...
Muito já se disse a respeito do mais discutido filme da atualidade, Coringa (EUA, 2019), do normalmente conhecido (e subestimado) como "diretor-roteirista de comédias" Todd Philips (trilogia Se beber, não case) e com grande elenco (que inclui Robert deNiro), encabeçado pelo sempre ótimo (e profundo) Joaquin Phoenix: de um lado, as já conhecidas críticas negativas com polêmicas sobre eventuais "incentivos" e "justificativas" para a violência dos marginalizados e oprimidos pela sociedade (no caso, o próprio Coringa numa Gotham City com cara de Nova Iorque de 1980); do outro, incondicionais derretimentos diante da performance de Phoenix e dos inúmeros simbolismos e referências a clássicos dos Quadrinhos e do Cinema...

Como não identificar, facilmente, elementos de A Piada Mortal (a mais famosa história de origem do vilão, em que também é um aspirante a comediante), Batman - Ano Um (cena do assassinato dos pais de Bruce Wayne seguida à risca) ou de Cavaleiro das Trevas (televisão onipresente com seus programas e notícias, analisada criticamente  e com o Coringa televisionado ao vivo)? E o que dizer da própria narrativa, diretamente imersa no período histórico da trama (início dos anos 80), época de soturnos clássicos oitentistas do Cinema contestador de uma América então coberta pela recessão e por falsos ídolos? Não por acaso, há enorme destaque para homenagens e releituras de dois deles em especial: os pungentes e dramáticos Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), ambos do mestre Martin Scorsese  que abandonou o cargo de produtor, tendo mesmo sido cotado para a direção... Sem dúvida, uma reflexiva construção de metalinguagens artísticas!

Nada como um dia após o outro para Robert deNiro:
Ontem, um perturbado comediante sem futuro (Rei da Comédia);
Hoje, o cínico apresentador que antes ele perseguia (Coringa)...
Nem preciso dizer, dada a classificação dos Morcegos (acima), que me filio à segunda corrente, dos que aplaudem com louvor... E há tanto mais a ser dito (no spoillers!), que o conjunto é bem maior que as poucas menções ora pontuadas! Assim, para além dos signos quadrinísticos e cinematográficos incorporados, tudo se mostra perfeitamente costurado numa história totalmente nova! Por isso, nada de ficar repetindo a asneira de que esse Coringa seria uma mera "mistura" entre o taxista psicótico Travis Bickle e o doentio comediante fracassado Robert Pumpkin (ambos personagens do deNiro naquelas obras-primas de Scorsese)!

Merece Oscar (e todas as demais grandes premiações):
entre o que tenta se adaptar e o que se entrega à loucura,
Joaquin Phoenix nos transmite pena,
compreensão, medo e asco...
E esse novo "estilo antropofágico" apresentado por Todd Phillips (um novo Tarantino?!), bem feito e numa embalagem conhecida (Drama social com Suspense psicológico à anos 70 e 80), aos poucos se revela uma bela e profunda fusão de temas tão relativamente distantes entre si (personagens de HQs e de filmes renomados; caos urbano e social real dos anos 80; discussão atual sobre fabricação e glorificação de monstros sociais etc.) por sobre um ícone consolidado do Cinema (inesquecíveis interpretações de Cesar Romero, Jack Nicholson e Heath Ledger) e dos Quadrinhos.

Numa inédita apresentação do personagem, pela primeira vez mostrado como um louco desde sempre (originalmente, a loucura advinha da sua queda num tanque de ácido, o que o deixa eternamente alucinado, branco e de cabelos verdes sem maquiagem), agora temos Arthur Fleck, um perturbado sujeito com inúmeros problemas psicológicos que, entre cuidar da sua mãe doente e manter-se num mundo cínico e opressor, acaba por virar vítima social de vários tipos de violência até uma ulterior "libertação" para práticas de assassinatos (secamente mostradas) em legítima defesa, por vingança ou por achar "devido", em meio a complexas convulsões sociais decorrentes da gigantesca recessão daquele início de Era Reagan... Protagonista insano e marginalizado inserido em cenário real de opressão  tão bem funciona de forma independente como bem poderia inserir-se em futuras produções do Homem-Morcego (especialmente diante de um final tão cheio de interpretações e possibilidades...)!

O louco assassino real que se fantasiava para se disfarçar e
o louco fictício, porém realista, que se fantasiou para se achar assassino... 
Trata-se de uma brilhante releitura das tantas já feitas com o "Palhaço do Crime" (aqui, com direito a uma nova maquiagem: triângulos azuis nos olhos, lembrando muito outro palhaço, o macabro e real serial killer John Wayne Gacy), sendo, entretanto, fiel a suas diferentes versões nesses mais de 70 anos de existência  desde sua primeira aparição, em Batman #1, de 1940, até hoje, muitas mudanças já rolaram pelas tantas mídias em que se fez presente: foi um sádico criminoso de jogos de estratégia (no início, nas HQs, e como mostrado em Batman - O Cavaleiro das Trevas, dirigido por Christopher Nolan, de 2008), um fanfarrão ladrão brincalhão (com direito a gás do riso, nos Quadrinhos e na série de TV dos anos 1960), um psicótico assassino engraçadinho (historinhas dos anos 1980 e 1990 e em Batman, 1989, de Tim Burton) e um caótico sádico e deformado, sem passado definido (a partir dos anos 2000). Logo, o fã de carteirinha de qualquer época sairá devidamente recompensado ao fim da sessão!

"Tantos rostos... Tão diferentes uns dos outros...
Tão poucos sorrisos..."
O Coringa poderosamente efeminado de
Frank Miller, pouco antes de matar a todos
num programa de auditório com gás do riso...
E essa reinterpretação se completa com outras ricas sutilezas: vemos o lado infantil latente do personagem (na sensível cena em que se assusta com a primeira vez que dispara uma arma, numa brincadeira), passando pelo sofrimento para controlar sua psiquê perturbada e se adaptar ao mundo "normal"  em seu desespero para conter incômodas risadas involuntárias, por exemplo, verdadeiro achado realista do roteiro para as famosas gargalhadas diante dos seus crimes nas HQs (como algo que nele parece querer "irromper")  incluindo toques de efeminamento, quando surge caracterizado e confiante na frente de todos, com a altivez característica do alucinado vilão (emulando o quase gay Coringa da 'graphic novel' Dark Knight, de Frank Miller, de 1986)... E isso sem apelações, num interessante e bem construído crescente na frente da tela: vários Coringas numa arrebatadora reinvenção – com direito a um inusitado encontro com seu futuro nêmesis ainda garoto, também emoldurado por outras adoráveis referências (como a deslizada do pequeno Bruce no "batposte" do parquinho, no melhor estilo da clássica série televisiva)!

Sim, há defeitos... E justamente quando mais tenta
alinhar-se com os Quadrinhos! Bom, eu mesmo me perguntei
qual família de bilionários que vai ver Zorro no cinema
numa noite de caos em Gotham e, ao tentarem escapar,
correm para o primeiro beco escuro... Os Waynes, claro!
Falando na Família Wayne, de se torcer o nariz, entretanto, para a transformação do sempre tão cordato e correto "símbolo de Gotham", Thomas Wayne, no "vilão" da vez, convertido de médico exemplar para Bruce e toda a Cidade num aspirante a político inescrupuloso, em contraposição ao protagonista "anti-herói", numa escancarada (e talvez desnecessária) crítica a Donald Trump, num acelerado processo final de "mal versus mal" que nem sempre soa da melhor forma (até um desfecho igualmente ruim)... Pensando bem, como criar empatia com um perigoso sociopata em potencial?! Tornando os conhecidos ícones da moralidade os novos algozes, ainda que indiretos, de todo o processo, oras – livrando-se, somente, o ícone Batman, aqui ainda um garoto a testemunhar o caos de Gotham em seu nascedouro (o que igualmente pareceu forçar uma conexão entre o futuro Cruzado Encapuzado e o insano criminoso)... 

Também de se lamentar a ausência de um final mais "aterrorizante" (apesar das já icônicas e cheias de diferentes interpretações "pegadas de sangue" num "futuro" Asilo Arkham... Teria sido tudo um devaneio?!), em que se veria, finalmente, após aquele frágil ser causar tanta piedade e compaixão na plateia, o triunfar da besta despertada em Arthur Fleck, nascendo, assim, o Coringa sádico e alucinadamente desprovido de moral ou sentido que todos amam (e com direito a um grande debochar da plateia pela piedade anterior, em mais um interessante exercício de metalinguagem  por que não?)! No entanto, analisando-se como um todo, tal final funcionaria só e tão somente como uma chata "cena pós-crédito (o que, graças a Deus, não teve!): um fan service para os decenautas de plantão, que, convenhamos, acabaria por quebrar a aura independente e anularia muitas construções dramáticas de toda a trama em função de futuras sequências!

"Dancinha Alex, The Large"?!
Não: ao contrário da loucura feliz do anti-herói de
Laranja Mecânica (e posterior piedade em razão
da violência estatal), esse Coringa nasce da loucura e,
até chegar ao seu descobrimento, causa pena...

Fórmula geral do sucesso de público e crítica: somatório de uma impecável interpretação de nuances (23 quilos mais magro... Oscar para Joaquin!), do burburinho causado com o prêmio máximo de um dos mais prestigiados festivais internacionais (
Leão de Ouro, em Veneza, em agosto), uma belíssima fotografia (entre interiores claustrofóbicos, como o apartamento de Arthur, e grandes espaços lotados de pessoas, caos de uma megalópole) e uma excelente trilha sonora – dividida entre os violoncelos de Hildur Gudnadottir (composta antes do filme, nalguns momentos lembra o que Hans Zimmer criou para o Coringa de Ledger) e o melhor do pop-rock e do traditional jazz (com destaque para White Room, Rock'n Roll Part 2 e clássicos de Sinatra  inexplicavelmente, sem a presença de Put on a happy face, de Tony Bennett)... O que restou? A polêmica da vez: a "glamurização" ou justificação da violência diante do "discurso esquerdista" de culpa à sociedade... 

Particularmente, não vi, em momento algum, qualquer vitrina de propaganda da violência ou de ode à vingança como resposta aos anseios sociais para que algum espectador encontrasse uma "desculpa" e assim se comportasse diante das adversidades da vida: fica claro, desde o primeiro frame, que veríamos muita coisa sob a óptica do vilão – o que é, de certa forma, temeroso, pela inarredável empatia com o narrador (assim como o igualmente polêmico Laranja Mecânica, de 1972)... Porém, como  somos sempre lembrados de sua grave insanidade, a "culpa" fica equilibrada entre a loucura do personagem e uma sociedade decadente e egoísta...

V de Vingança: mais uma das inúmeras reconstruções de clássicos
das Sétima e Nona Arte aqui, na releitura do uso de máscaras
para o anonimato em meio ao caos e à anarquia como vingança social.
Um dos maiores responsáveis pela densidade que acompanhamos na tela, o sempre ótimo Joaquin Phoenix (HerO Mestre), não poderia ter sido mais preciso, em recente entrevista ao site IGN“Não acho que seja responsabilidade de um cineasta ensinar a diferença entre o certo e o errado para o público: as pessoas podem interpretar letras de músicas de maneira errada, podem interpretar livros de maneira errada... Se alguém está nesse nível de distúrbio emocional, qualquer coisa pode ser um gatilho”! Perfeito: acusar a realidade doentia em que vivemos atualmente, de alavancadas fascistas crescentes por entre alienações coletivas, tão similar ao caos de desesperança do tempo revivido em Coringa, é negar o aspecto sociológico da Arte: fazer sentir e pensar  a Arte imita a vida! Já o contrário, o fato de "a vida imitar a arte", em relação a eventuais "influências" que aloprados como os incels ("celibatários involuntários", conhecidos por sua falta de trato social e combinados massacres armados...) e outros grupos fanáticos de perturbados sociais poderiam "sofrer" com esta produção, reúne tanta demagogia como os achismos de um presidente ainda mais perturbado e perigoso nos dias atuais... 

É como no inteligente dizer, em postagem no Facebook, do oscarizado documentarista Michael Moore (Tiros em Columbine): "Todos nós americanos ouvimos muito sobre este filme, que devemos temer e nos manter longe dele. Nos contaram que é violento, doente e moralmente corrupto. Nos disseram que a polícia irá vigiar as sessões em caso de problema. Nosso país está em um profundo desespero, nossa constituição está em pedaços [...] mas, por alguma razão, devemos ter medo de um filme. Eu sugiro o oposto: o maior perigo para a sociedade é não ver este filme"... Tal como um Erasmo de Rotterdam, iluminado contestador absoluto da sociedade de seu tempo – infelizmente por vezes tão similar à do nosso... –, em seu célebre Elogio da Loucura, bem poderia dizer a respeito da escalada de Arthur Fleck no imperdível lançamento do ano: "A pior das loucuras é, sem dúvida, tentar ser sensato em um mundo de loucos"...
Resultado de imagem para coringa
Dancinha da celebração de um psicopata é um absurdo?
Não para um pesado drama independente e, ao mesmo tempo, ótima adaptação de HQ!
Absurdo mesmo é jamais ter lido A Piada Mortal ou Louco Amor
(uma das primeiras repaginações do Coringa,
para a clássica série animada Batman)... 
 

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