Cena do sexto episódio da segunda temporada ("O Dilema do Bonde") da instigante comédia The Good Place, da Netflix, em que o "Deus/Demônio" Ted Danson recria o famoso dilema para torturar suas almas humanas preferidas... |
Imagine-se sendo o condutor de um bonde e, percebendo-se sem freios, avista, logo adiante, cinco trabalhadores fazendo ajustes
nos trilhos da ferrovia em que você vem trazendo seu veículo desgovernado...
Num rápido lance, você consegue visualizar também um pequeno trecho de trilhos
à direita, encaixado ao seu num desvio à frente e alcançável pela chave de controle do seu bonde, que o desviará para longe dos
pobres cinco desafortunados operários – entretanto, nesse novo trecho à direita, você também descobre um homem, que não terá tempo de sair da frente
do bonde em alta velocidade no caso de você mudar o curso... O que você faz:
Aciona a chave de controle do bonde e o levará para a direita (melhor matar "só" um a ter
de encarar a morte de cinco homens)? Ou não vira a chave, deixando-se levar no curso original, porque, de qualquer
forma, você estaria escolhendo quem matar (e matar é errado, ilegal e/ou um pecado)?
Santo dilema, Batman!... Realmente, Menino-Prodígio: tal situação mirabolante bem parece ter sido extraída
diretamente de um daqueles eletrizantes e bizarros finais da série televisiva
Batman (1966/1968), em que, geralmente preso junto ao sempre exaltado Robin numa
grande e mortal armadilha, várias perguntas pululavam na telinha, instigando a audiência a imaginar como a Dupla Dinâmica poderia livrar-se de tamanha enrascada no próximo episódio! Na verdade, a horrenda vivificação do parágrafo anterior faz parte do famoso Dilema do Bonde (The Trolley Dilemma), um desafiador problema proposto pelas filósofas Phillipa Foot (década de 1960) e Judith Thomson (anos 80), que, mexendo com inúmeras questões de
Ética e Moral (tão bem aplicáveis numa aula de Filosofia, Direito, Sociologia
ou Psicologia), aborda desconcertantes possibilidades de participação (ou não)
do interlocutor nos destinos de outras pessoas.
E, falando no Homem-Morcego, todo esse dilema com o
bonde ficaria bem mais interessante com ele mesmo sendo o motorneiro, não? Afinal,
quem mais se contorceria diante da ideia de matar um inocente do que
aquele personagem que, diante do testemunhar o cruel assassinato a tiros de seus pais na infância, jurou
combater o crime, porém sem jamais desrespeitar o sexto mandamento, nem com criminosos?
Super-Homem? Não... Afora o fato de que, com o Azulão e no caso do bonde, bastariam dois
breves voos à velocidade da luz e tudo estaria resolvido, com direito a todos
sãos e salvos posando para as fotos ao lado dos trilhos retorcidos! Assim, só restaria ao mais soturno, humano e cheio de conflitos paladino da justiça das HQs
a dura incumbência de, driblando seus demônios internos e suas crises de
identidade, a dificuldade maior na solução daquela desumana situação – depois que
todas as tentativas com seu incrível cinto de utilidades falhassem, é claro!
Curiosamente, no que me veio essa inusitada ideia para esta postagem, descubro
na rede mundial de fazer doidos que alguém já a enfrentou – e filosoficamente
falando: no livro Batman e A Filosofia – O Cavaleiro das Trevas da Alma, os
autores Mark D. White e Robert Arp traçam, num grande artigo, um perfil psicológico sobre o mais
complexo dos personagens dos Quadrinhos e, por entre profundas discussões como “A loucura do
Coringa – O príncipe palhaço pode ser considerado moralmente responsável?”,
“Bruce Wayne deveria ter se tornado Batman?” ou “Batman poderia ser o Coringa”, analisam o posicionamento ético do Maior Detetive do Mundo diante do
tema "Por que Batman não mata o Coringa?" valendo-se do próprio "dilema
do bonde"!
E então, numa pequena expansão do caso como aqui apresentado, agora com o Batman ocupando o lugar de quem enfrenta o dilema e estando fora do bonde, ao lado de uma alavanca que muda o curso dos trilhos, e com o Coringa sendo o homem dos trilhos do lado direito, em oposição ao grupo de cinco operários desavisados do outro lado, os autores do livro questionam qual seria o comportamento do nosso herói. Santa facilidade!, diria o jovial Burt Ward na pele do multicolorido Robin da série seiscentista – diante do extenso curriculum criminal do demoníaco Palhaço do Crime, o "justo" seria jogar o veículo para cima do infeliz e se resolveriam dois problemas com um bonde só: as cinco pessoas se salvariam e um dos mais sádicos assassinos de todos os tempos seria eliminado de uma vez por todas, salvando-se, com isso, toda uma infinidade de futuras vítimas possíveis do enlouquecido vilão! Será?
1. Ele não mata;
2. Se ele desviasse o bonde para o lado do Coringa,
salvaria cinco inocentes, mas, igualmente, mataria alguém (ainda que um louco de pedra
sem respeito algum pela vida humana...);
3. E, se ele matasse o Coringa sob o "argumento"
de que estaria salvando milhares de futuras possíveis vítimas (típico
pensamento utilitarista, corrente ética embasada no que é moralmente aceitável de ações que visem a um bem
maior ou à felicidade de todos), não haveria sustentação ética em tal gesto, dado que estaria punindo antecipadamente
– algo absurdamente ilegal e inviável, porquanto nada comprovaria que o
diabo voltasse a delinquir;
4. Já em ele matando o Coringa porquanto o próprio
palhaço fora o responsável por colocar os cinco inocentes ali... Seria execução sumária por
vingança! E sem direito a julgamento – o que, convenhamos, não combina com o
rígido código moral do Detetive;
5. Por fim, e se ele matasse o Coringa para livrar-se da culpa
que pesaria sobre seus ombros em relação aos cinco pobres trabalhadores? Difícil de acontecer... O mais provável, nesse caso, seria ele se erguer
após o incidente, dizer seu já famoso "Eu sou Batman!" e, em seguida,
justificar que só pode ser responsabilizado pelas mortes causadas diretamente
por ele, não assumindo qualquer morte causada pelo Coringa!
Justo e inteligente, assim me parece! Especialmente,
pela óbvia razão de poupar o alucinado vilão para atacar em
novas historinhas perturbadoras... Brincadeiras à parte,
legalmente o nosso amigo dark dificilmente se safaria se se resolvesse por qualquer das decisões –
ainda que tivesse à disposição toda a fortuna Wayne para compor a melhor
banca de advogados! Ademais, resta ainda uma incômoda pergunta: Batman REALMENTE não mata?!
Na verdade, para quem não mata... O Homem-Morcego já causou bastantes estragos! E isso desde sua primeira aparição: roteirizada por Bill Finger (que, falecido em 1974, jamais viu o devido reconhecimento como co-criador do sombrio detetive) e desenhada por Bob Kane (por muito tempo considerado como o único idealizador dos personagens de Gotham City), a edição de número 27 da revista Detective Comics já trazia o Cruzado Encapuzado matando o empresário-vilão Alfred Stryker – e, a partir de então, teria matado inúmeras vezes, valendo-se, para tanto, até mesmo de armas de fogo! Logicamente que, com a forte censura dos anos 50 e as reformulações disso derivadas, acabou-se por considerar este Batman original, no melhor estilo policialesco e vingativo (espécie de fusão entre O Sombra e Zorro), como um "personagem de um universo paralelo", fora, portanto, da dita cronologia oficial, e pertencente a alguma "Terra" diferente da nossa... No entanto, com o passar do tempo e das várias mãos de roteiristas e editores inescrupulosos, conseguiu-se fazer com que o nosso honrado herói viesse a atentar, direta ou indiretamente e por muitas vezes, contra a vida de vários bandidos! Clique aqui e conheça um pouco sobre tais casos isolados e sem maiores proporções para a sua eticamente correta cruzada na sinistra Gotham.
E tudo isso para se chegar a um outro polêmico dilema em A Piada Mortal, considerada por muitos fãs como "A" obra-prima definitiva sobre o eterno embate entre o Cruzado e seu nêmesis, o Coringa – que, por sua vez, originariamente, morreria ao final da sua primeira aparição nas HQs, Batman n. 1 (1940), coisa que, graças a Deus (ou ao Diabo...) acabou não ocorrendo, dado o extremo potencial do vilão! Escrita pelo Mago maior das enigmáticas e filosóficas histórias, Alan Moore, e lindamente desenhado e colorizado, respectivamente, por Brian Bolland e John Higgins, a genial saga em formato graphic novel ("romance gráfico", uma história completa, geralmente considerada como à parte da cronologia das tramas continuadas convencionais) não só narrou, pela primeira vez, uma origem para o Palhaço do Crime – um comediante fracassado que, tentado pelo ganho fácil de um roubo, acabou enlouquecendo como o sádico assassino após cair num tanque de produtos químicos – e filosofou sobre seu eterno embate com o Homem-Morcego, como também deixou para a posteridade uma incômoda indagação ao final de sua trama: "teria Batman matado o Coringa na última página?".
Essa dúvida sempre existiu entre os "bat-fãs" e tomou bastante força na internet depois que a defendeu o também famoso roteirista do Morcego, Grant Morrisson, dando como certo de que a resposta a tal questionamento seria "SIM"! Na verdade, não creio ter acontecido tal final para o demoníaco vilão, por mais que a história se feche perfeitamente como começou – com os filosóficos pingos de uma chuva intermitente; praticamente o mesmo diálogo entre Batman e o Coringa ("Estive pensando muito ultimamente entre você e eu. Sobre o que vai acontecer com a gente no fim. Vamos matar um ao outro, não?"); a ênfase na piada que abre os textos e é contada por inteiro na penúltima página ("Tinha dois caras num hospício...") – e que alguns detalhes levem você a refletir sobre a possibilidade do assassinato – o fato de Batman ter rido junto, como se cruzasse finalmente a linha que separava ambos entre a sanidade e a loucura (que aparece, nos desenhos finais, como um reflexo, numa poça, dos faróis de uma viatura que se aproxima); os risos que vão diminuindo (restando só a sirena da viatura policial ou da ambulância que se aproxima); o próprio título da história... Sinto que a ironia da trama toda foi justamente isso: elevar a problematização dos dilemas vividos pelo herói a um nível em que nada mais lhe restasse a não ser rir junto com a loucura daquilo tudo – mas não a ponto de eliminar seu algoz!
De qualquer forma, todo esse conflito existencialista sobre "matar ou não matar" parece reinar mesmo no mundo dos Quadrinhos, porque, em se considerando o universo cinematográfico do herói, os homicídios parecem não ser algo tão incômodo... Sem maiores dados estatísticos para os primeiros seriados cinematográficos do Batman nos anos 40, e não levando a sério os alucinados "POF" e "SOC" das onomatopeicas brigas quase infantis do divertido filme baseado no seriado televisivo dos anos 60, os Morcegos levantaram que, de 1989, ano de estreia de Batman, de Tim Burton, até o último filme da trilogia do diretor Christopher Nolan, Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), o "herói que não mata" eliminou nada menos que 44 criminosos! Isso sem contar os massacres dos filmes posteriores: no filme Batman Vs. Superman - A Origem da Justiça, com um surpreendentemente ótimo Ben Affleck vivendo um Batman mais velho e amargurado, em muito lembrando o Cavaleiro das Trevas de Frank Miller (para quem matar não era algo tão difícil, inclusive com uma forte tentação de eliminar o Super-Homem), o "placar" fica em 21 mortos (!); já em sua última participação num longa da DC/Warner Bros., Liga da Justiça, parece-me que, mais relaxado com a companhia dos "super-amigos", acabou "bonzinho" e não matou ninguém além de alguns parademônios de Apokolips, dimensão do vilão Darkseid...
À margem de data tão significativa quanto o Batman Day, "Dia do Batman", comemorado no último dia 15 e anualmente marcado por promoções e lançamentos de produtos licenciados sobre o Homem-Morcego, penso que o culto a personagem tão fascinante deveria ser bem menos mercantilista e muito mais filosófico – poucos personagens podem servir de referência para tantos estudos e livros sobre Psicologia, Filosofia e outros questionamentos científicos, como o alter ego de Bruce Wayne, e ainda servir fascinando, de crianças a idosos, ao longo de quase oito décadas (Batman fará 80 anos em 2019), em tão gigantesco número de mídias, capazes de render milhões e milhões de dólares! Mas e você: ainda duvida que um combatente da Justiça honrado e eticamente correto como o Defensor de Gotham tenha estraçalhado tantos criminosos por algumas historinhas e, especialmente, na tela grande? É só conferir os links especiais ao longo desta postagem e os vídeos logo abaixo e tirar suas próprias conclusões...
Ah... Já ia esquecendo: e o que VOCÊ faria no dilema do bonde?
Ah... Já ia esquecendo: e o que VOCÊ faria no dilema do bonde?
0 comentários:
Postar um comentário