Jamais
me esquecerei daquela tarde marcada pelo meu pai... Afinal, graças a ele, eu me
encontraria com um dos maiores poetas da Língua Portuguesa - e que, por acaso,
era seu primo: Nauro Machado! E lá fui eu, ensimesmado em meus vinte e
poucos anos e com meu "portfólio" esquálido de alguns de meus
melhores poemas escolhidos para participar de um concurso literário local, que
eu ansiava fossem lidos pelo Mestre - isso, é claro, se eu conseguisse
entregá-los!
Pontualmente,
chegava aquele velho calvo e de barbas alvas e bem cuidadas, em seus trajes
sociais de mangas curtas com seu inafastável guarda-chuva repousado no braço
direito, enquanto eu o aguardava nervosamente na frente de sua repartição
pública da Secretaria da Cultura do Estado, no Reviver. "Teu pai falou
comigo que és escritor, que também és um poeta! O que querias deste velho
cansado de Poesia?", brincou comigo, de cara, no que eu gaguejava e só
sabia me diminuir: "Quem sou eu, Poeta: o senhor é o Mestre! Sou seu fã há muito tempo, ainda mais depois que li sua 'Antologia Poética', aquela, com prefácio de Drummond... Só
vim ter a honra de conhecê-lo"...
Nisso,
ele me convidou para entrar e tivemos ali uns dois dedos de prosa - prosa essa
que, em retrospecto, confesso sinceramente nem saber como se deu, uma vez que
eu mal conseguia falar, tremendo e gaguejando diante de um ídolo: meu Deus, era
Nauro Machado que estava ali! E o espanto nem era por qualquer distanciamento
ou dificuldade imposta por sua figura aparentemente austera, quase um bruxo do conhecimento, não: amante do
Centro Histórico e morador da Rua das Hortas que sempre foi, coisa mais fácil
era encontrar o gênio a descer e a subir as ladeiras seculares de São Luís com
sua silhueta elegantemente longilínea e, mesmo vista de longe, visivelmente
reflexiva (adoráveis os causos contados pelo meu pai sobre sua figura,
especialmente a de um jogo de damas interrompido pelo Poeta por causa de uma
inspiração, o que teria enfurecido o meu Velho). O nervosismo era coisa de não
saber mesmo o que dizer diante de alguém que admirava tanto, à distância, pelo
poder de seu talento e sua cultura...
E,
num desses silêncios meus de admiração em meio à nossa "conversa" -
coisa patética que, tenho certeza, fatalmente se daria se eu igualmente desse
de cara com outros ídolos, como Chico Buarque ou João Gilberto -, ele,
jocosamente, deu uma palmada em minha coxa direita, como que a me despertar
daquele transe, e me disse uma frase, bem alto, que jamais esqueceria:
"Tem que ler, poeta: não se faz Poesia, nem se escreve, sem ler!",
depois que falara sobre o que estava lendo naquele momento: alguns dos grandes
franceses, como Rimbaud, em seus idiomas originais (a melhor forma de se sentir
Poesia...). Eu que sempre lera Poesia, mas, é claro, infinitamente menos que
ele, apenas sorri desconcertado, admitindo, meio que tacitamente, que a avidez
pela Crônicas e pelos Contos me havia, realmente, sempre sido um pouco
maior!
Logicamente
que jamais lhe mostrei meus escritos, não tive coragem. Mas agradeci demais por
aquele encontro e todas aquelas breves lições que carrego até hoje em meu peito
de poeta amador... Ainda o encontraria algumas vezes, como na locadora de seu
filho, o cineasta Frederico Machado, ou nalguma feira do livro: "- Estás gostando,
poeta (ele insistia em me chamar assim)?" "- Achando os preços ainda
um pouco salgados para uma feira, Mestre..." "- Mas livro não é caro!
Caro mesmo é aquela coisa ridícula chamada de abadá, imundície feita para se
brincar uma noite nessas micaretas toscas, aquilo que é caro!"... Mas
nunca lhe mostrei um verso meu sequer! Faltou coragem, medo de alguma crítica
mais dura ou seria apenas reconhecimento de pequenez diante de um ídolo? Nunca
vou descobrir... Tudo o que sei é que, ao tomar conhecimento, hoje pela manhã,
da sua partida, não houve como não ficar triste e reflexivo, especialmente
diante de seus versos sempre a elucubrar sobre a existência e a essência da
Poesia em si - e, quase que instantaneamente, vieram à mente os derradeiros
versos de "O Parto", um de meus favoritos do Grande Nauro (como eu
lhe retribuía o gracejo do "poeta" que recebia): ser poeta é duro
e dura/ e consome toda/ uma existência... Nada mais certo diante de uma
vida embriagada e desbravadamente devotada à Poesia que este gênio teve ao
longo destes 80 anos bem vividos!
Saísse
do Maranhão e seria reconhecido pelo Mundo, mas preferiu fazer de seu mundo
esta ilha encantada por seus versos, um baldio e genial poeta e funcionário público, tal como outro famoso grande gênio dos versos... E, saindo do Centro, morreria um pouco -
tal como se deu, na realidade, desde a descoberta de seu "aguardado"
câncer (Estou esperando o câncer que seja mestre), quando acabou por
abandonar seus amados paralelepípedos históricos em troca de uma proximidade
maior com o filho, no moderno e "nobre", porém estéril de poesia,
bairro do Renascença... Mas, apesar de tudo isso, a tristeza sobre a partida de
Nauro Machado aos poucos, ao longo deste sábado, foi em mim se
desfazendo justamente pelo Poder ainda atual de sua obra-viva, que lateja e
goteja inúmeras inspirações a cada lida minha nalgum de seus livros brilhantes,
cheios de um estranho lirismo metafísico que acalenta e derruba o mais incauto
visitante de seu trabalho perene.
E assim, aos poucos, depois de uma breve visita a alguns de seus versos mais caros no pouco tempo deste sábado entre os filhos e os afazeres do inefável existir, foi-me vindo a boa sensação de que ele bem poderia estar a se informar, com sua ainda mais magra silhueta depois dos últimos anos de luta contra sua doença, onde é que, no outro lado, poderia encontrar mais dos seus - e a reviver os versos cheios de pungência sobre a vida e a morte de meus outros ídolos, fiquei com a boa certeza de que Drummond, Bandeira, Cecília e Pessoa o receberão de braços abertos, a tratar, de igual pra igual e pela eternidade, sobre o que é poetizar... |
Ofício
Ocupo o espaço que não
é meu, mas do universo.
Espaço do tamanho do meu corpo aqui,
enchendo inúteis quilos de um metro
e setenta
e dois centímetros, o humano de quebra.
Vozes me dizem: eh, tu aí! E me mandam bater
serviços de excrementos em papéis caídos
numa máquina Remington, ou outra qualquer.
E me mandam pro inferno, se inferno houvesse
pior que este inumano existir burocrático.
E depois há o escárnio da minha província.
E a minha vida para cima e para baixo,
para baixo sem cima, ponte umbilical
partida, raiz viva de morta inocência.
Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui?
E depois ninguém sabe mesmo do espaço
que ocupo, desnecessário espaço de pernas
e de braços preenchendo o vazio que eu sou.
E o mundo, triste bronze de um sino rachado,
o mundo restará o mesmo sem minha quota
de angústia e sem minha parcela de nada.
Nauro Machado
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sábado, 28 de novembro de 2015
Um baldio adeus...
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