domingo, 12 de janeiro de 2020

Meu Primeiro Romance
(Terceiro Mês)

Você ainda vai me amar amanhã...?
CAPÍTULO VI
Símbolos, símbolos são...

Há muito dispensei o uso de qualquer aparelho fonográfico em casa. Curiosamente, fiz isso bem antes de desistir de comprar CDs e DVDs diante do volume ofertado pelos arquivos torrent e em streaming por essa imensa internet de meu Deus... Até ganhei, há muitos anos, um home theater meia boca - à época, ele já era ultrapassado - e ensaiei ouvir música por ele, mas não fui adiante. E, dada a frustração dela quando, indiretamente, recusei uma vontade sua de me presentear com um desses modernos aparelhos de som que emulam modelos clássicos de vitrolas feitas de madeira, que leem várias mídias digitais além de tocar LPs e fitas K-7 - "Nem pensar: só são bonitos; na prática, muito fracos em potência...", teria dito eu com minha sutil deferência de costume -, acomodei-me, em definitivo, com minha smartv e seus recursos virtuais e físicos (valho-me ainda de pen-drives e HDs cheios de canções em suas várias entradas USB). 

Porém, mais definitiva é a minha certeza de que tal situação não perdurará: inúmeras são as vezes que me surge um vinil nas mãos e, diante de mim, o prazer visual de ter o velho Gradiente 3 em 1 para tocar meu bolachão... O que, simplesmente, não entendo é o que me ocorre nesse exato momento: o equipamento de som se converte em outro e pelejo para alcançar o compartimento onde se tocam os discos - que idade teria eu agora, deste tamaninho, que não alcanço aquele grande móvel de madeira da sala da casa de mamãe na minha infância: 3 anos? 5? E com essa consciência de velho viúvo combalido, que nem sei quem é, sobrevivente de tantas vidas amargas que nem sei quais são? O que diabos está acontecendo aqui?!

Incrível como os símbolos se mantêm vivos - não respirantes, mas vivos, mesmo, no sentido de devolver a vida sentida à sua época de existência! Tanto que sou pequeno novamente, menor que esta radiola que já foi de meu tio-avô e que tanto admiro ingenuamente em sua bela composição: parece uma comprida mesa, como esses aparadores atuais, porém surpreendente ao revelar-se rádio - painel com controles de volume e sintonia num receptáculo embutido disposto frontalmente em seu centro - e vitrola - igualmente embutido, escavado na parte superior também no centro do móvel, coberto por uma tampa acoplada - com as caixas de som guarnecidas por fasquias, que, à altura dos meus ouvidos então infantis, toca Amada Amante, de Roberto Carlos (concordo: música nada infantil - culpe os meus pais!). E inesperadamente a vejo criança como eu, a brincar com as capas dos discos, equilibrando-os como num gigante castelo de cartas... Mas eu só a conhecera adulta!

Sensação ímpar, ser criança maravilhada com os primeiros sons e imagens... Prefiro, no entanto, ter de novo o Gradiente à minha frente: com ele surgem todos os cheiros, sabores, imagens e texturas dela e do tanto que ela já realmente preenchia a minha vida naquele apartamento em que começamos e onde fomos tão felizes quanto infelizes na descoberta do amor da minha vida... Como noutro dia, em que a vi chorar outra vez ao escutar toda a fita que lhe gravei de Natal - simplesmente esquecera de comprar qualquer presente convencional e, no último minuto, corri para a casa de um amigo cuja discoteca é bem maior que a minha: juntei o antigo Belchior e a então novidade do Cold Play, que ela gostava tanto, num só pacote!

Amo esse aparelho de som... Somente com ele eu chego a tocar o som (juro) ao sentir sua pele quente e macia junto à minha em qualquer das canções que dançamos por sobre aquele tapete gasto de tantos de nossos passos cheios de paixão e alegria... E toco, por mais uma vez, a única mulher que realmente amei nessa vida...

CAPÍTULO VII
Ninguém vive para sempre...

Depois de muito tempo com a cara fechada, gradativamente aumentando o franzir dos cenhos a um limite de rugas antes desconhecido por mim, meu editor finalmente abre um sorriso ao ler o título deste capítulo: fã incondicional de ficção científica assim como eu, ele adorava tanto o livro Androides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip K. Dick, quanto sua versão cinematográfica Blade Runner - O Caçador de Androides, de Riddley Scott, e imediatamente reconheceu, nesse título, a referência àquelas adoráveis reflexões metafísicas de ambas as obras cheias de analogias entre a efêmera existência dos androides da obra e a vida humana em si. Contudo, logo a aura do conforto que me passou com aquele lampejo de simpatia se converteu em rosto raivoso e inquieto novamente e, não me contendo, questiono acerca daquelas irritadiças caras e bocas:

- O que foi, cara... Não estás gostando?!
- Não é isso: nem preciso dizer o quanto, pra muito além de seu empresário desde o sucesso do blog e atual editor, sou seu fã incondicional - você é sempre genial e prende o leitor com qualquer coisa que escreva! Mas... O que é isso tudo? Não 'tou entendendo: são crônicas independentes que se fundirão? É sonho?!
- Um pouco dos dois, cara... Sabes que sou um cronista por natureza...
- Isso mesmo! E por que, então, não te manténs na tua zona de conforto, lugar em que és mestre?! Sei que querias te perpetuar, que achas que poemas e crônicas acabam esquecidos e não se vive para sempre, realmente... Não, isso não me parece um romance: não há sequer nomes para os personagens: "ela", "mãe"... Eu seria quem, "o editor"?!
- Não precisa haver nomes! São as vivências de um homem que perdeu o grande amor e agora a busca por todas as suas existências naquilo que mais simboliza a mulher amada, a Música - mesmo em lembranças de tempos em que ela sequer existia...
- Sim, sim: tem mais isso, essa obsessão com Música! Cada capítulo tem uma "canção-tema", é? Poderia ser uma boa ideia, vender um disco com a trilha sonora junto, para acompanhar a leitura...
- Não alopra: a Música é ela, de forma etérea na vida dele... E tu não estás ouvindo agora mesmo teu Pink Floyd, Wish you were here?! Qual o absurdo disso: muita gente só lê ouvindo Música e isso acaba por gerar, por sua vez, simbolismos vivos de memória...
- 'Tá, 'tá bom... Poético! Não sei: como profissional, posso te falar do mercado e me parece que, para um primeiro romance, situação que, automaticamente, vai atrair inúmeros novos leitores, essa tua obra me parece complexa até para os teus já iniciados seguidores!
- Será...? Amor é universal e a ideia de vários amores num só, de várias vidas numa só, a que foi, a que poderia ter sido e a criada pelo autor sob o manto de um protagonista que, em metalinguagem, prepara-se para o primeiro romance, talvez cative! Agora, por exemplo, nesses próximos capítulos, saberemos mais da intimidade e do tamanho do amor do casal central: sexo sempre é chamariz e o deles... Além de intenso, parece bem bonito!
- Pode ser... Até viajei com esse aqui: as divagações do escritor em torno do amor que ele quer passar para o papel, como você, a vida das memórias em torno dos símbolos revisitados e as finas comparações com o existencialismo da ficção científica, gênero com o qual tua escrita sempre flerta... Mas, pô, já estamos no sétimo capítulo e nenhuma trama surge completa?! Tudo muito fragmentado! Caramba...
- Já eu não gostei desse, até pensei em reescrevê-lo, criando alguma figura de linguagem metalinguística, sei lá... Vamos combinar uma coisa: o que tu achas de continuar lendo...? E eu fico aqui só esperando quieto, curtindo mentalmente Blade Runner Blues, como se fosse o próprio Deckard esperando alguma coisa acontecer! - terminei abruptamente, fingindo irritação. Ele gostava mesmo de uma cena: de longe, parecia sempre que estávamos brigando ou éramos velhos inimigos.
- E eu tenho escolha?! - debochou, virando a página para o capítulo VIII...
CAPÍTULO VIII
"- Eu me sinto um origâmi nas tuas mãos..."

- O que foi? Não gostou? - perguntei assustado com o seu levantar de sobrancelhas e o arregalar de espanto, levantando a vista para me encarar.
- Sério?
- O quê?
- Tu vais usar essa frase como título de um capítulo?
- Qual o problema? É o capítulo em que mostra o quanto eles eram felizes na cama...
- Justamente: muita exposição! Até porque não era só cama, né: falas de vários lugares inusitados onde fizemos amor! Sei lá... Me sinto invadida... Te falei isso num momento de intimidade, de como tu me descobrias e me fazias me descobrir como mulher, me moldando em tuas mãos como um origâmi... Não queria que as pessoas soubessem disso!
- E quem é que vai saber? O livro não é autobiográfico! São personagens fictícios!
- Pode não ser explicitamente, agora diz isso para um leitor cheio de imaginação: "Ah, ele viveu isso... E foi com a mulher dele..."! Basta ligar o carro narrado naquele capítulo e o teu primeiro Corsa Windy azulzinho pra saber que as loucuras dos estacionamentos foram nossas!
- Não creio: nem todos pensam assim ou confundem autor e obra...
- Eu sempre pensei quando lia um romance - especialmente aqueles românticos, mesmo: isso foi vivência do escritor ou foi inventado?
- A gente sempre carrega algo da gente, é fato...
- Então todas essas passagens desse teu romance...
- Se são verdadeiras? Não, juro que não vivi nem a metade disso com ninguém!
- Graças a Deus, porque não foi comigo nem a metade dessas situações...
- A ciumenta de sempre...
- Só porque não sei separar o homem do artista?! Lembre que, pra mim, ainda és o cientista querendo dar uma escapadela na Literatura! Sabe-se lá quantos recados para tuas "ex" já não foram dados imiscuídos pelos versos de teus poemas! E quantas não foram as recordações de antigas paixões vividas intensamente camufladas pelas peles dos protagonistas dos teus contos e crônicas?!
- Não seja tola... Esse romance é teu!
- Tu o dizes... 
- Com quem mais eu viveria esse desdobrar de corpo e de alma senão contigo, amor...?!
- Sempre rápido com as palavras... E com as mãos! Ei, assenta o facho: "não te dei ousadia"...

E rimos muito da sua imitação daquele sotaque de Débora Falabella em Lisbela e O Prisioneiro - não por acaso, era a trilha que começava a tocar em nosso Gradiente, com a faixa Você não me ensinou a te esquecer, linda releitura de Caetano para um obscuro clássico brega no CD novinho que lhe dera dois anos antes, logo após sairmos do cinema e encostarmos nas Americanas - passatempo que ela dizia adorar fazer ao meu lado, mas que, por muitas vezes, apressava minhas demoras com a desculpa de que ainda iríamos jantar, nunca admitindo seu real enfado! Em seguida, risos, entre nós e algumas taças de carmenére, eram certeza de muitos beijos, toques e delícias intermináveis de combustão instantânea nos nossos corpos sempre quentes... E assim, naquela noite, nós nos amamos e gozamos e fomos muito felizes em mais uma noite inesquecível, em que a dedilhei, abracei, apertei e a desdobrei tal como a peça de origâmi mais cheia de recônditos e dobraduras, beijando-a e tocando em cada ponto de seu lindo corpo pequeno... Mal sabia eu que, muito em breve, estaríamos discutindo se só fôramos felizes nesses momentos de amor e sexo - tanto fazendo se era em nosso minúsculo primeiro carro, na praia, numa sala da faculdade, no chão da cozinha ou em nossa cama! Era janeiro, comecinho de 2005. E era também o começo do nosso último ano juntos...

 

+ voam pra cá

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!

Quem linkou

Twingly Blog Search http://osmorcegos.blogspot.com/ Search results for “http://osmorcegos.blogspot.com/”
eXTReMe Tracker
Clicky Web Analytics

VISITE TAMBÉM:

Os Diários do Papai

Em forma de pequenas crônicas, as dores e as delícias de ser um pai de um supertrio de crianças poderosas...

luzdeluma st Code is Copyright © 2009 FreshBrown is Designed by Simran