domingo, 26 de junho de 2016

Lembro-me de Bethânia há uns 70 anos...

Eu me lembro dela quando ouvia, na casa de meu amado avô Sebastião, Maria Bethânia, clássico de Capiba na voz do maior cantor brasileiro (de todos os tempos), Nelson Gonçalves - "Maria Bethânia,/ te lembras ainda daquele São João?/ As tuas palavras caíam bem dentro do meu coração.../ Tu me olhavas com emoção e, sem querer,/ pus minha mão em tua mão" - e me perguntava se era verdadeira aquela história que vovô contava, sempre que ouvíamos juntos essa canção na sua radiola, sobre o fato de aquela grande cantora ter esse mesmo nome porque seu irmão mais velho, Caetano Veloso, adorava essa música... Muito tempo depois (meu avô amigo, inclusive, já havia partido), enquanto assistia, sozinho, ao vídeo-documentário Circuladô Vivo, eu descobri, no relato nostálgico do próprio Caetano, que, sim, como ardoroso fã dos antigos sucessos da rádio que a sua mãe, Dona Canô, cantava-lhe sempre, foi ele quem sugeriu o nome do clássico para batizar a irmãzinha que estava para chegar, naquele predestinadamente glorioso ano da graça de Iansã de 1946...

Eu me lembro dela quando, numa de minhas loucas e alucinadas caçadas a grandes LPs nas casas dos amigos, daquelas para gravar várias fitas K-7 com as melhores coletâneas da nata da MPB, do Jazz, da Bossa Nova e das Big Bands recém-descobertas de então, no começo da década de 90 dos meados de minha adolescência, achei o disco dela - na verdade, não era bem "dela", mas com o melhor das suas canções de até então: Simplesmente O Melhor de Maria Bethânia. Aquela coletânea histórica, naquele disco histórico da Philips... Simplesmente Explode Coração, Grito de Alerta, Negue, Coração Ateu, Brincar de Viver, Minha História, Sonho Impossível, Ronda, Atiraste uma pedra, Olhos nos Olhos, Álibi, Um jeito estúpido de amar e aquela que me deixaria boquiaberto com tanto "erotismo explícito", Mel: "É meio-dia, é meia-noite,/ é toda-hora/ Lambe olhos, torce cabelos/ Feiticeira, vamos embora"... Muito tempo depois, numa entrevista de Wally Salomão de pouco tempo antes de morrer (foi-se cedo o versátil artista), é que fui descobrir que o genialmente ardiloso poeta estava falando, na verdade, de várias espécies brasileiras de abelhas - tudo doce e simbólico como a própria Bethânia!


E eu me lembro dela porque, falando em fita k-7, minha mãe me incumbiu de gravar, certa feita, aquele seu mais novo trabalho da época, então uma coqueluche de críticas derramadas por sobre aquelas reinterpretações de alguns dos mais famosos clássicos da dupla Roberto e Erasmo - eu até gostava de ouvir quando meus pais tocavam Roberto Carlos em casa, mas daí a me tirar de uma brincadeira, aos 16 anos, na piscina na casa do meu tio, para aquela bendita gravação do CD recém-comprado pelos meus familiares... Recolhido no silêncio do quarto do som, tornei-me instantaneamente um fã ardoroso da obra de Roberto e Erasmo a partir de então por causa dela - especialmente depois daqueles incríveis acordes de violoncelos, como que a "narrar" uma fuga, na introdução daquela que eu antes achava tão brega, Fera Ferida, mas que, com ela, entrando e se imiscuindo por entre aqueles melódicos contra-baixos com o seu rompante "Acabei com tudo..." - ah, As canções que você fez pra mim: aquilo era de outro mundo! Sim, os arranjos eram belíssimos e tão arrojados quanto clássicos, mas... Aquela voz...

Voz tamanha, que me lembro do assombro de todos quando do anúncio de que ela gravaria Zezé diCamargo e Luciano - blasfêmia, permitir a santa sujar seu timbre com o profano brega que ninguém mais aguentava ouvir naqueles "sertanejos" anos 90 (que das clássicas modas de viola, como a moderna Tocando em frente, que ela mesma já havia imortalizado, tinha tão pouco)?! Mas o que dizer do resultado final? "É o amor..."! Ficou lindo, ficou lindo, e eu me rindo de cantar, pela primeira (e última vez), um agora clássico de Mirosmar José de Camargo (haveria outras breguices no mesmo estilo anos depois, que também ficariam belas, mas esquecíveis)! Não resta dúvida, ela tem esse dom arrebatador, de quebrar paradigmas: lembro-me, por exemplo, de tantas as especulações de sempre sobre sua sexualidade (sexo dos anjos? Dos deuses?), no que ela irrompeu, por fim, e rebateu com uma famosa entrevista na Playboy de 96: - Quando eu amo, pode ser qualquer coisa: homem, mulher, bicho... Tolices diante da rainha: sim, uma rainha, inclusive com incômodos momentos de famosos pitis nervosos, de não ser facilmente agradada, de ser dura em entrevista, de largar show com pouco tempo de apresentação... Mas faz parte do seu show...

Eu sempre me lembro de seu Álibi perfeito como a primeira mulher a mais vender discos neste País masculinizado ao pensar em voz forte e femininamente grave e meio soprana, porque ela, a dona da voz, é precisa, perfeita e cheia de opinião desde o canto alto da ira social lancinante de um Carcará até os arroubos de candura e introspecção dos últimos trabalhos permeados por delicada Poesia... Isso sem esquecer de sua presença cênica tão pulsante, dos saltos e braços jogados ao ar, de longas madeixas cheias e de vestidos e graças prenhes da liberdade dos anos 60 e 70 ao lado dos conterrâneos baianos e Doces Bárbaros Gil e Gal, que até arriscou como atriz no delicioso Musical mambembe e genial de Cacá Diegues, Quando o carnaval chegar..., em que "atuava" ao lado dos "maiores desanimadores de auditório" (na debochada pecha de Manoel Carlos), os ultratímidos Nara Leão e Chico Buarque - este, "vizinho de aniversário" no último 19, mas já entrado na casa dos 70 há alguns anos, de quem imortalizou aqueles olhos nos olhos...

Porque vê-la é uma experiência teatral, em suas nuances orquestradas de olhares e gestos por entre a voz, seja ao longe, no alto do altar de algum carro alegórico de sua (e minha também) idolatrada Mangueira, seja bem "de perto", nos closes das apresentações do Fantástico nos anos 70 da era pré-videoclipes, mas uma coisa eu me lembro dela em lamento: que pena eu nunca a tenha visto pessoalmente, num show ao vivo, não tenho isso para lembrá-la... Mas essa "voz-pessoa", no belo dizer do famoso irmão, ecoa e me faz vê-la esvoaçante e atuante por entre cada tom de cobre e bálsamo que exalam de cada interpretação que tenho dela em mim desde sempre... Agora a vejo prateada em seus ainda mais lindos cabelos brancos e ar de completa diva, deusa mesmo, como que prestes a alçar os céus com sua voz de trombeta divina... Que ainda se demore bastante por aqui, que ainda quero vê-la ouvindo-a, quero ouvi-la me lembrando de muito mais coisas... Afinal, são 70 anos de recordações...


 

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