O ano era 1997. Não, acho que era... 1998, era, sim. Eu convidei Jandira, minha então namorada de "retomada" (havíamos terminado anos antes e naquela época meio que retomávamos nosso enlace para até hoje), para irmos ao Teatro Arthur Azevedo ver um dos meus "ídolos" de admiração de sempre, Mário Lago, com um ' show' ambientado num botequim e dirigido por seu filho, Mário Lago Filho, sucesso no Rio no ano anterior e agora visitando, enfim, minha humilde e provinciana São Luís. Acho que o nome do espetáculo era "Causos e canções de Mário Lago", mas não tenho certeza... Sabe, minha memória não costuma falhar, mas... Faz tanto tempo...
Era a primeira vez em que víamos um artista consagrado ao vivo. Jandira até sabia do "conjunto da obra" e de algumas marchinhas dele, mas eu o conhecia, sempre admirara sua completude artística! Afinal, de alguém que fizera faculdade de Direito (tal como eu o fazia então) partirem tantos num só, era algo de se louvar: gostava do ator, do compositor de clássicos imortais, do poeta... Do homem simples, comunista e agnóstico ("Deus até está lá, mas é grande demais para que eu pense nEle", declararia certa feita) só não conhecia ainda o lado dramaturgo ou roteirista, mas era questão de tempo. E ele estava ali, entrando no palco de um Arthur Azevedo longe de estar cheio, com sua figura longilínea e sua bela elegância inglesa, de microfone na mão, cantando... Não, acho que as cortinas se abriam com ele já sentado e quem começava cantando era Chamon, cantor carioca que lhe servia no espetáculo como "escada" para a narrativa dos tais causos do título, além de cantar a maioria das músicas (sendo apoio para o velho Lago nalgumas em que este se botava a cantar ainda bem afinado, do alto dos seus oitenta e tantos anos de então)... Ou eles começavam conversando sentados a uma mesa, em volta de músicos também sentados, todos como se estivessem num típico bar carioca... Diacho, não tenho certeza!
Mas tenho certeza absoluta de muitas outras coisas naquela noite, como no momento em que, depois de alguns minutos de espetáculo começado, os funcionários da produção entraram na minha cabine de balcão, bem acima e mais longe do palco (éramos meros estudantes, tínhamos que comprar lugares mais baratos - e com meia-entrada!), avisando que, devido ao grande número de lugares vagos (como podiam os ludovicenses deixar vazio um teatro onde se apresentaria Mário Lago?!), Jandira, eu e os outros da nossa cabine poderíamos ocupar qualquer outro lugar do teatro - Ah, como era melhor ver o velho Lago mais de perto, sem ser aquela figura transcendental e atemporal que só via da TV, sempre alvo e um tanto etéreo (como naquelas lindas cinematografias de Geoffrey Unsworth)! Ficamos na plateia! Ou... Ou teria sido na frisa?
Mais certas ainda são as emoções que posso reviver até hoje, ao relembrar os causos contados com maestria por Mário Lago (muitos deles por mim já conhecidos - mas como era melhor ouvi-los pessoalmente...!) e aqueles sucessos eternos, como a simplesmente genial "Nada Além" (coautoria com Custódio Mesquita); "Aurora" (Se você fosse sincera, ôôô... ai, ai... Parceria com Roberto Roberti); "Atire a primeira pedra" - clássico absoluto de que o velho Lago costumava dizer ter criado os célebres versos "Perdão foi feito pra gente pedir" (considerados por Sérgio Cabral "Pai" como um dos mais belos da Música brasileira) com base numa brincadeira sua bem escatológica... - que compusera ao lado de Ataulfo Alves, parceria que se repetiria na ultrafamosa (e mais-que-injustiçada) "Ai, que saudades da Amélia": poxa, Amélia não era submissa (essa era "Emília", esta, sim, uma forno-e-fogão diminuída: Eu quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar Que de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar! Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz: Emília, Emília, Emília, eu não posso mais, diziam os machistas versos de Wilson Batista e Haroldo Lobo, aquele, um desafeto, e este outro parceiro de Lago); Amélia era, na verdade, uma companheirona, que não perturbava quando as coisas estavam difíceis e não futilizava a vida diante das adversidades, como fazia a companheira-personagem atual da canção (em "Ai, que saudades...", Lago relembra como era bom viver ao lado de Amélia)! Belos tempos de liberdades poéticas mal compreendidas...
Mas não há nada mais relembrável até hoje do que o meu "momento-tietagem": pela primeira vez, eu falaria com um grande artista que admirava... Até então, eu sempre me perguntara sobre como eu me comportaria diante de um ídolo, como Chico Buarque ou Tom Jobim (isso, claro, até este morrer em 94): seria como quando tomei coragem e, alguns anos depois, finalmente falei com meu genial "tio" (primo do meu pai), um dos poetas-maiores, Nauro Machado, travando por completo sem conseguir mostrar-lhe meus versos? Ou seria ainda mais patético, como quando o amigo Sérgio Ronnie, deparando-se com o mestre Nelson Pereira dos Santos, acabou surgindo com esta pérola, na falta de algo melhor a dizer (e que acabou virando motivo de chacota entre nós, seus amigos, até hoje): "Sr. Nelson, o senhor sabe se o seu clássico Jubiabá já saiu em vídeo?!". Ou, ainda, como um Tom Cavalcante em início de carreira, visivelmente emocionado em receber justamente o mestre Lago em seu camarim depois de um 'show' de humor num teatro carioca... Só vendo. Então, tomamos coragem, Jandira e eu, e descemos com um pequeno grupo de senhoras que, animadamente, pediam à produção, ao final do espetáculo, para ter uns minutinhos ao lado de Mário Lago...
E lá estava o "velho" da memória fotográfica, aquele meu "amigo etéreo" (tenho minhas crenças, mas Mário era mesmo daqueles acima do bem e do mal... E próximo da minha vida como um amigo, como o era o Tom...), aquele que desde sempre me ensinara a ser "velho" no melhor sentido da paixão pela arte que faz, atemporal, e que me mostrara que era possível sair do mais burocrático e enfrentar as adversidades rumo a fazer algo de valoroso neste país de esquecidos. Cansado, bem mais velhinho do que aparentava ao longe pela TV, mas extremamente afetuoso, enquanto ele era apresentado à Jandira e a esta dizia, ao escrever-lhe um autógrafo (ela, menos ainda que eu, soube o que fazer na hora H e recorreu ao mais clichê, ré, ré), se seu nome era com 'y', uma vez que "antigamente, escrevia-se seu nome assim", eu, um pouco mais afastado (o velho Lago ainda mantinha seu jeitão conquistador e era, na hora, rodeado por mulheres, sendo Jandira a mais nova; eu simplesmente não atrapalharia...), conversava com o cantor Chamon sobre os bastidores do 'show' e sobre como aquele senhor ainda era talentoso e cantava tão afinadamente bem com sua voz apesar de um tanto mais fraca...
"Vamos gente: agora deixem o Sr. Lago descansar", dizia um daqueles afeminados funcionários do 'backstage' da produção (ou era do teatro, mesmo?), enquanto todos se despediam daquele momento marcante (especialmente para mim): apertei-lhe a mão em cumprimento (firme, como com todos os de bom caráter!), disse-lhe o manjado "sou seu grande admirador", enquanto ele ainda terminava de agradecer a todos e de brincar com o calor de São Luís: o bom velhinho estava visivelmente cansado (ainda mais com o calor desta cidade!)... Alguns anos depois (quantos, meu Deus: três, quatro?!), vinha a notícia da internação e da morte, logo em seguida: perdíamos aquele amigo com quem brevemente conversáramos um dia, Bem, você e eu... E o Brasil perdia um dos seus artistas mais completos!
Ontem soube que foi seu centenário: se estivesse vivo, completaria 100 anos de História. Justo ele, que sempre brincou com o tempo e com ele mantinha um pacto ("Tenho um acordo com o tempo: ele não me persegue, nem eu brigo com ele, e quando for a hora a gente se encontra..."), quis o destino que ele se fosse um pouquinho antes, graças a um câncer no fígado... Mas ele se mantém por aqui, tanto para os mais esquecidos, que podem vê-lo facilmente nalgum "Vale a pena ver de novo" da vida, como para os que com ele rivalizam em memória, como eu, que vivo e revivo o bom passado para dele extrair as melhores histórias atemporais... Mas e aquele autógrafo?! Eu me lembro de que fora num pedaço de papel-toalha de má qualidade jogado a esmo no camarim, não foi, Jandira? Ou teria sido diretamente nas folhas daquela tua agenda que sempre carregavas em tua bolsa? Procura aí, essa menina... Não, Bem, a agenda não era essa, acho que era a de 1997... Ou, sim, de 98, vai... Não a guardaste em algum lugar...?
As cortinas do TAA se fecham para o Meste Lago e Jandira e eu nos vamos para o tempo sem fim...